sábado, 27 de fevereiro de 2010

O NOME DA FOME

“Naquele tempo, com a barriga na miséria, eu vagava pelas ruas de Cristiânia, cidade singular que deixa marcas nas pessoas...”
Assim começa o romance A fome, do norueguês Knut Hansum, escritor que ficou mundialmente conhecido por causa do romance que fala daquilo que tem o mais desgraçado dos nomes, que reduz um homem a nada, um nome que transforma o mais digno dos homens em rebotalho humano: a fome. Hansum foi um profundo analista dos caracteres mais sórdidos que compõem a psiquê humana. E nada é mais sórdido, mais miserável, mais doído que a fome, pois de mãos dadas com ela, andam também a injustiça e a maldade. Não conheceu o verdadeiro sofrimento, aquele que não teve as entranhas devoradas pela fome.
Fome não é só a ausência do alimento. É a certeza atroz que não haverá nada para comer naquele dia, nem no seguinte e nem no outro. É como se toda a esperança se esvaísse pelo ralo da falta de compaixão dos homens. É como se toda a dor do mundo se concentrasse num olhar de tristeza infinita, quando não há sequer a dor para sentir no estômago dilacerado pelos sucos gástricos, que sem ter o que digerir, passam a destruir o próprio faminto.
A fraqueza é generalizada. O entorpecimento é total. Não há mais pensamento, não há mais exigências, não há mais nada. Só a certeza de que a indiferença dos que passam lépidos a caminho de suas casas cheias de alimentos, é ampla, geral e irrestrita. Deus não tinha a menor idéia o que estava fazendo quando disse: “Trabalharás todos os dias de tua vida, infeliz, e comerás o pão que o Diabo amassou...”. O Inferno, bem que podia atender pelo amaldiçoado nome de fome.
O faminto, o de verdade, é aquele que não mais tem forças para pedir um pedaço de pão, pelo amor de Deus; é aquele que evitamos olhar nos olhos, porque o olhar, saindo de dentro das profundezas sem fim de órbitas semi-mortas dos desesperados, como que nos acusa, e diz que somos todos culpados.
Para o faminto, Deus é o único interlocutor, pois perde a faculdade de se comunicar com aqueles seres misteriosos, que são os homens que não conheceram o horror da fome. Estômagos plenos de satisfação, como estão os cérebros dos que nos dirigem, seria o caso de perguntarmos?
Reduzidos à indigência mental, esfaimados de conhecimento, é a resposta, pois não há nada que se possa acrescentar sobre aqueles que governam 8,5 milhões de quilômetros quadrados, dos quais a metade, sequer é ocupada, quanto mais cultivada.
Daí de comer a quem tem fome, disse o Todo-Poderoso, num prenúncio do que adviria. Como quase tudo o que falou, esta foi mais uma mensagem que não ouvimos. O trágico, é que continuamos fazendo questão de não ouvir.
Enquanto um só homem padecer o mal da fome, a humanidade poderá dizer que é tudo, menos humana.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

RETÓRICOS DE ARAQUE

Há quem pense que o radicalismo retórico do PT não vai além do amontoado de tolices típicas de quem usa a cabeça apenas para separar uma orelha da outra. Ledo e Ivo engano, diria Jarbas Passarinho. Na verdade, o festival de besteiras que saem da boca desses desislustrados petistas têm desdobramentos práticos, sim. Haja vista a sem cerimônia com que age a turma do chamado MST e outros que tais, que se converteram em bandos armados que invadem propriedades alheias, saqueiam, ferem, destroem e têm como punição, o repasse de verbas gordíssimas que lhe são repassadas por governos de todos os naipes mercadológicos e ideológicos, além das chamadas ONGs que, em tese, seriam Organizações Não Governamentais mas que, mais apropriadamente mereciam, se não todas, pelo menos boa parte, ser chamadas de Organizações Governamentais (OGs), na medida em que são dependentes de repasses governamentais. Não o fossem e teriam seus cofres supridos por entidades particulares, empresariais ou não.
E para comprovar que os radicais do PT estão com tudo e não estão prosa, basta que olhemos com atenção o que dizem. Por exemplo: O Foro de São Paulo, que ao longo dos últimos 20 anos contou com a participação ativa da Frente Amplio de Uruguai, da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) de El Salvador, da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) da Nicarágua, do Partido Revolucionário Democrático (PRD) do México e do Partido Comunista de Cuba, entre outras forças políticas, apontam, claramente, para o desejo de uma ditadura de esquerda, ou do proletariado, como preferirem, neste país desgraçado e abandonado por Deus, que por sinal não é brasileiro; pelo Diabo, por Exus, Oguns, Eguns e alguns.
Outro exemplo: Além de participar ativamente do Foro de São Paulo, respondendo por sua Secretaria Executiva, o PT participa da Conferência Permanente de Partidos Políticos de América Latina (COPPPAL) e da Coordinación Socialista Latinoamericana (CSL).
Mas. se o PT mantém relações com nossos seus aliados europeus não descuram do estreitar relações com partidos do Oriente Médio, da Ásia e da África. Atualmente, o PT mantém protocolos de cooperação com diversos partidos, entre os quais o Partido Comunista da China. Segundo o próprio PT, o Partido tem posições definidas, como nos casos da independência do Sahara Ocidental e da luta da Frente Polisário, "posição que esperamos ver acompanhada pelo governo". A propósito, enquanto é motivo de reprovação a visita do chanceler de Israel ao Brasil, certamente é motivo de orgulho e honra a visita (malfadada) de Mahmoud Ahmadinejad, o tiranete iraniano. Detalhe: Israel é um país democrático. O Irã, uma ditadura feroz.
O PT e o senhor Lula da Silva dos Santos do Pau Oco defendem el señor comandante Fidel Castro, assim como essa piada de mau gosto chamada Hugo Chávez. O dito Partido dos Trabalhadores mantém um protocolo de cooperação com o Pólo Democrático Alternativo (PDA), o que não seria nada demais, não fosse o tal PDA,
comprovadamente, apenas barriga de aluguel para terroristas das Farc.
A extensão dos danos causados à política externa do Brasil por esses "teóricos" radicais do PT é incalculável. Enquanto isso, o nosso nada estimado senhor Lula "Deficiente Cultural” da Silva olha olimpicamente para o lado e finge que não é com ele. E a pergunta que não quer calar é: Será que só acordaremos quando for tarde demais?

A CANÇÃO DE CRISTO

Há muitos anos escrevi um texto intitulado “Falando de música”. Nele, citava, entre outros, o ainda desconhecido Martinho Lutero. E esse mesmo Lutero, tão condenado pela Igreja Católica, dizia que “a música é o bálsamo mais eficaz para acalmar, alegrar e vivificar o coração daquele que está triste, daquele que sofre.
A música torna os homens mais doces, mais benévolos, mais modestos e mais sensatos. Os que sabem cantar, não se entregam nem à tristeza nem ao desgosto. Eles são alegres e afastam a preocupação com o auxílio de suas canções”.
Antes de entrar no assunto que me levou a escrever estas mal traçadas linhas, como se dizia antigamente, devo esclarecer que tenho uma relação pessoal de muito respeito e afeto, adoração, mesmo, poderia dizer, com o homem chamado Jesus (Ieshua, na sua língua natal, o aramaico). E essa relação tem já muitas décadas de existência. Décadas, para falar apenas em termos de tempo terrestre, pois Ele me contou, em sonho sonhado antes que tudo acontecesse, que já me conhecia desde o tempo em que eu não existia. E por conhecê-lo tão bem – desculpem a falta de modéstia e o excesso de pretensão – é que ouso afirmar que Jesus, o Cristo, gostava de cantar. E de sorrir.
Como não sorrir e não cantar, se era um homem bom na sua mais refinada essência, no mais profundo do seu ser? É claro que teve seus momentos de amargura, também. Quem não o teria, sabendo o destino que o aguardava? Mas, o que queremos abordar aqui, é o Jesus cantor, o maior e o melhor de quantos poderiam existir.
Nas noites da minha solidão, gosto de ouvi-lo, voz poderosa e, simultaneamente, maviosa, enchendo todo o Universo com o seu esplendor, cantando o seu cântico sobre os próprios desejos. Sabe-se que entre os povos do Oriente, os cantos, as danças e as luzes eram elementos essenciais para as cerimônias das festas religiosas. Quem leu sabe que os antigos egípcios faziam a volta de seus templos dançando e cantando.
Os hebreus tinham, eles também, o mesmo costume. É bom lembrar que Davi¹ dançava e cantava diante da Arca². Na Bíblia, quem nos fala que Jesus cantava é o próprio Mateus, o evangelista, (XXVI, 30). Diz ele que o Mestre e os apóstolos entoaram um cântico após a celebração do último Pessach³ d’Ele com seus discípulos.
Muito embora não conste dos livros sagrados, foram encontradas partes da letra desse cântico entoado por Jesus e seus discípulos após a Páscoa – depois da qual seria traído por Judas Iscariotes, o traidor. Fragmentos desse texto foram encontrados na 237ª carta de Agostinho (4), dito santo pelos católicos, ao bispo de Ceretius.
A seguir, está o cântico que é encontrado em partes no próprio Agostinho: “Quero desligar e ser desligado. Quero salvar e quero ser salvo. Quero gerar e quero ser gerado. Quero cantar, dancem todos de alegria. Quero chorar, batam em todos com dor. Quero ornar e quero ser ornado. Sou a lâmpada para vocês que me veem. Sou a porta para que nela batam. Vocês que veem o que faço, não digam o que faço. Representei tudo isso nestas palavras, mas não fui em absoluto representado”.
Agostinho não afirma que esse hino foi cantado, mas não reprova suas palavras. Na verdade, ele só condena os priscilianistas(5), que incluiam esse hino em seu Evangelho. De certo o que temos, é que qualquer que tenha sido a discussão que se formou em torno desse cântico, era ele utilizado em todas as cerimônias religiosas. Como se sabe, todas essas cerimônias têm alguma semelhança e alguma diferença, mas o importante é a adoração a Deus, independentemente do nome que receba e em qualregião do globo se situe.
Dizem os crentes que, infelizes daqueles que não O adoram, porque estariam eles trilhando o caminho do erro e por isso estão à sombra da morte. Porém, é preciso que se pense que, quanto maior for sua infelicidade, mas devemos lamentá-los e suportá-los. Como diria o próprio Ieshua, eles não sabem o que fazem e, menos ainda, porque o fazem.


GLOSSÁRIO ¹ - Davi – Rei de Israel de 1012 a 972 a.C.² - Arca (Arca da Aliança) – Pequeno baú o caixa construída por Moisés (Moshe, Mochê) para servir como receptáculo das “Tábuas da Lei”, seguindo a orientação feita por Deus.³ - Pessach - Páscoa em hebraico, mantendo o significado de “passagem”.4 - Aurelius Augustinus, (354-430), bispo de Hipona, norte da África e doutor da Igreja. 5 - Seguidores de Prisciliano (335-385, cristão espanhol, o primeiro a ser executado como herege pelo braço secular. Sua doutrina era um misto de gnosticismo e profetismo fanático.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

BIBELÔ

O texto a seguir, evidentemente '~ao é meu. Como sempre digo, falta-me talento e competência para tanto, o que, o meu amigo querido Rui Guilherme tem de sobra. E por acreditar que os eventuais leitores deste blog têm, como eu, o hábito de ler bons textos, a minha decisão de publicá-lo a seguir. Boa leitura a todos.

BIBELÔ

Rui Guilherme

“O homem põe; Deus dispõe; e o Diabo cai na gargalhada”
MILLOR FERNANDES

A casa onde a professora de catecismo Madalena viera morar era muito velha. Muito velha e muito pobre. Na verdade, não passava de um quarto-e-sala no meio de outros cômodos de iguais dimensões, resultado da caótica divisão feita em um antigo e senhorio sobradão do século XIX que, ao se tornar decadente, virara um cortiço no bairro da Cidade Velha.

Originalmente, tratava-se, o prédio, de um carcomido palacete dos tempos áureos da borracha. Nos dias de fausto, isso nos fins do século XIX e início do século XX, ali fora a morada da família e serviçais de um coronel de barranco, constituída da mulher, oito filhos e filhas, empregados e antigos escravos. De esquina, dois eram os andares. O térreo, não se sabe por que chamado com um certo desprezo de porão, era cheio de portas pela frente e pela lateral, mas só duas das seis portas da frente abriam: aquela que dava na longa escadaria de dois lances, oito em cada, e que desembocava no senhoril átrio da casa grande – nome dado pela família ao segundo andar, enorme, sombrio, com quatorze quartos, dois salões, a capela e uma cozinha medieval, além de um tremendo banheiro – um só, dividido em dois compartimentos separados por uma meia parede: num lado, o gabinete onde se faziam as “necessidades”, equipado com dois vasos sanitários e onde se guardava a coleção de urinóis de variados tipos, além de dois barris cheios de água, com duzentos litros cada, de onde se tiravam os baldes que eram despejados nas bacias, para a descida dos dejetos. No outro compartimento, ficava o banheiro propriamente dito, escuro, feio, onde se mantinham cheios quatro tonéis de água e dos quais a família se servia para tomar seus banhos de cuia.

A única outra porta fronteira que abria dava para o porão, pois tanto as outras quatro da frente, quanto as quatorze enormes portas laterais, eram mantidas trancadas, além de ferradas por dentro e por fora com traves fixadas com grandes cravos feitos à mão pelo mesmo ferreiro que servia há tempos o severo coronel seringalista. Ali, no térreo do palacete, eram estocadas as fétidas bolas negras de balata, junto com paneiros de farinha, fardos de charque, carnes de caça secas e salgadas, peles semi-curtidas de animais silvestres, mantas de pirarucu e de outros peixes de rio conservadas no sal, sacas de frutas variadas, grandes feixes de lenha e um monte de carvão. Aos fundos, ficavam os “quartos” dos empregados: cubículos que tinham por paredes esteiras pregadas em barrotes de madeira fixados ao chão enegrecido do porão. Era lá que viviam os caboclos e caboclas, negros e negras, e o irrequieto bando de moleques de recado e de serviços gerais. No porão, havia um arremedo de banheiro, com caixas de madeira servindo de vaso onde os empregados faziam suas necessidades. Os dejetos líquidos e sólidos ficavam depositados em buracos fundos de onde se exalava um bafio sempre fétido, miasma que de tempos em tempos era amenizado com banhos de creolina, mas isso mesmo somente quando o fedor era tal que vinha a incomodar os patrões, ocupantes do andar superior, chamado por todos de “casa grande”.

A mulher do coronel morreu como sempre vivera: calada, raramente ouvia-se-lhe a voz. E assim se foi no meio da noite, como que fugindo de uma vida apagada e anódina, limitada a parir com alguma regularidade doze filhos, dos quais somente oito vingariam. Quatro se finariam “anjinhos”, em tenra idade, a morte deles encarada pela mãe com estóica resignação: - “foi vontade de Deus”, dizia; e, pelo pai, com gélida indiferença.

Ao passar-se desta para a melhor, a matriarca deixara escapar um ronco vindo do fundo de sua garganta, parecido com o de um porco, que foi logo abafado pelo pesado ressonar do coronel. Este, ao acordar, estranhou a imobilidade da mulher, que sempre pulava silenciosamente da cama para já estar pronta quando seu marido e senhor se decidisse a deixar o leito. Sentindo-lhe frias as carnes, logo compreendeu que a mulher tinha morrido. Chamou a empregada mais velha para que tomasse as providências mais imediatas. Depois, tranquilamente foi tomar seu café. Ao ver uma das filhas chegar à mesa, deu-lhe a bênção e o bom-dia habituais e, antes que a pequena fizesse qualquer pergunta, foi logo dizendo: - “A mãe de vocês amanheceu morta. Vou providenciar o enterro. Chama tua irmã mais velha e vai avisar o padre.” Dito isso, arrotou ruidosamente e ganhou a rua.

A vida de dissipações do velho sacripanta, fauno que desde rapazinho era o terror das empregadas e das meninas pobres da Cidade Velha, merece um conto só para ele e para suas peripécias. Mas não é dele que cuida esta narrativa, e sim da professora Madalena, moça-velha beirando os cinqüenta, paupérrima, católica papa-hóstia, que sobrevivia do minguado salário que lhe pagava o Cura da Sé, padre Bonifácio, pelas aulas de catecismo e outros serviços prestados à paróquia pela virgem Madalena.

A mãe de Madalena concebera uma única filha. O pai, português que imigrara para o Brasil anos antes da Segunda Guerra Mundial, alentejano de origem, analfabeto, sobrevivia dos trocados que ganhava empurrando carroça nas ruas de Belém. Louro nos poucos anos de sua dura juventude, cedo tornar-se-ia inteiramente calvo, restando-lhe as sobrancelhas, precocemente embranquecidas, a ornar os olhos intensamente azuis que encantaram a mulata que viria a dar à luz a Madalena, deixando a menina órfã de mãe quando acabara de completar seis anos.

O pai, carroceiro, foi extremamente dedicado à filha. A boçalidade do alentejano, aliada à sua força física, foi o suficiente para deixar a rapaziada passar longe da Madalena. Além disso, a menina era fisicamente desinteressante. Magra e ossuda, mesmo quando se pôs moça, quase não tinha seios, tanto que sutiãs nunca usou, limitando-se a manter o tórax guardado em antiquados corpetes, cobertos por uma peça de roupa demodée, chamada de “combinação”: espécie de camisola jogada por sobre os ombros e que ia até perto do joelho. Além da calçola e da combinação, havia ainda a anágua. Só depois de pôr ao corpo toda essa roupa, chamada de “roupa de baixo”, é que vinha o vestido folgado e bem abaixo dos joelhos.

Quadris em Madalena, nem pensar: era reta como uma tábua de engomar, o corpo a lembrar o de um menino.

A herança lusa pespegara-lhe um buço muito visível, quase um bigode. As pernas, como costuma ser com as das mulheres de sangue português, eram grossas e bem-feitas, porém Madalena nunca se depilara, mantendo o pouco que aparecia das canelas cabeludas dentro de grossas meias presas às coxas por liga; meias das mais baratas que conseguia encontrar.

Por fim, o cabelo mal cuidado era de um louro desbotado, mas, por força do sangue materno, era encarapinhado, fazendo com que Madalena fosse vista por todos como aquele tipo que no Norte vulgarmente é chamado de “sarará”.

O pai morrera-lhe quando Madalena chegava aos vinte anos. Morte lenta, precedida de meio ano de muito sofrimento, Madalena viu-se obrigada a vender a carroça, alguns poucos cacarecos e a casita a custo adquirida, situada em área alagada do violento bairro da Estrada Nova.

Ao ser enterrado aquele único parente, Madalena não chegou a passar fome graças ao empreguinho que conseguira na Igreja da Sé, e já vinha morando fazia algum tempo em um dos cubículos do casarão retratado no início desta narrativa. Morava sozinha. Sozinha? – “Não!”, dizia a catequista Madalena. – “Eu e Deus! Nunca está sozinha a pessoa que leva Jesus em seu coração!”

Todo sábado, pouco antes da missa das sete, Madalena ia confessar ao padre os pecados que nunca em sua vida cometera. Ficava escarafunchando na memória, buscando com afinco os maus pensamentos da semana, mas praticamente nunca os tinha. Quase toda semana era o mesmo duelo entre o confessor e a catequista:

- Padre, dai-me a vossa bênção porque pequei.

- Quanto tempo faz que não se confessa, minha filha?

- Uma semana, padre.

- E quais são seus pecados?

- Padre, eu senti inveja da professora Nair, minha colega de catequese, quando ela falou que tinha sido pedida em casamento.

- Mas porque inveja, minha filha? Você está pensando em casar?

- Eu, Padre? Deus me livre! Se há alguma coisa em que eu nunca pensei foi em homem! Toda a minha vida é dedicada ao amor de Deus! Jesus é meu noivo, o Espírito Santo é meu esposo! Deus me livre desse negócio de casamento! Cruz-credo! Homem?!? Deus me livre! Antes uma boa morte!!!

- Mas, então, minha filha, onde é que fica a inveja da moça que vai casar se você mesma diz que não pensa em casamento? Isso não é inveja, minha filha... Inveja é querer para si mesmo alguma coisa que o próximo tem, e que a gente não tem, mas gostaria de ter... Vamos lá, qual é o outro pecado?

- Ah, não sei não, padre. Eu pensei que estava com inveja da Nair, mas se o senhor diz que eu não pequei, então vou ter que fazer outro exame de consciência. Mas não dá para o senhor me dar uma penitenciazinha, só pra gente não perder a viagem?

- Tá bem, minha filha, tá bem. Reze lá uma Salve-Rainha, um Pai-nosso e duas Aves-Marias. Ego te absolvo in nomine Patris...

- Padre, padre! Não dá para aumentar a penitência? Um terço, um tercinho que seja, tá bem? – suplicou a beata.

- Está bem. Vá lá. Um terço, tá de bom tamanho. Ego te absolvo...

Essa busca de pecados inexistentes numa vida em estado de graça e a súplica por penitências mais pesadas acabara transformando-se em um hábito para confessor e penitente. A princípio, o bom do padre tentara fazer ver à catequista que o cristão que leva vida sem pecados não deve procurar o confessionário; que os padres já têm muito trabalho ouvindo as faltas do rebanho, algumas até muito graves; que a orientação espiritual e o próprio sacramento da penitência devem ser reservados para aqueles que decaíram da graça, encontrando-se em situação de pecado mortal, desde que seja sincero o arrependimento; que os pecadilhos de Madalena não eram faltas que estivessem a demandar a sacra confissão. Apesar dos argumentos do sacerdote, Madalena não conseguia deixar de bater ponto no confessionário:

- Padre, dai-me a vossa bênção...

- De novo, minha filha? Você é santinha, você nunca tem pecado de verdade, obtemperou o confessor, ainda que com bondade e paciência.

- Mas, meu pai – suplicava Madalena. – Como é que eu vou poder receber o corpo e o sangue de Jesus, se eu não me confessar? Ah, Padre, não faça isso comigo. Seu eu receber o Corpo de Cristo sem ter recebido sua absolvição, a Hóstia vai virar carne humana e sangue na minha boca!

Diante da insistência da fiel, o padre acabou desistindo de fazê-la ver que estava livre para receber a Eucaristia. Assim, a ouvia distraído. Quando Madalena acabava e antes do Ego te absolvo, o padre perguntava logo: - “Um terço de penitência, tudo bem?”. E com isso Madalena corria, satisfeita, para ajoelhar-se no altar lateral onde havia a tela em que Jesus aparecia tendo seus pés lavados e enxutos com a basta cabeleira loura de Santa Maria de Magdala. Lá desfiava prazerosamente o terço da penitência, quase sempre acrescentando algumas orações adicionais, por via das dúvidas. E essa rotina só veio a ser interrompida quando Madalena roubou o bibelô da casa de uma de suas alunas.

Léa, chamava-se a aluna. Menina de seus doze anos, era linda: cabelos loiros fartos e lisos desciam-lhe em suave cascata, derramando-se quase até a cintura. Os olhos eram de um verde-esmeralda que a todos encantavam. Já mocinha, com seios pequenos, mas proporcionais, era alta para sua idade, com o talhe ereto de uma palmeira imperial. Estava a completar anos e vinha há meses freqüentando a Cruzada Eucarística da Sé, onde Madalena dava aulas de catecismo. A solitária catequista juntara-se à corte dos seduzidos pela irresistível Léa, ao ponto de pressurosamente aceitar o convite para ir à casa da menina, para “comer uma fatia de bolo e tomar uma taça de guaraná”, como antigamente se dizia ao falar em festa de aniversário.

Léa estava linda. Um vestido verde combinava à perfeição com os olhos da mocinha. O cabelo fora armado em rabo-de-cavalo. Feliz com a festinha feita em sua homenagem, a menina cintilava.

- Parabéns, Léa, cumprimentou Madalena, estendendo à aniversariante seu presente, um terço guardado em um estojo de plástico branco.

- Oi, professora! Que bom que você veio, exultou Léa, com sinceridade. – Fique à vontade, viu? Mamãe! Papai! Olhem só quem veio pra festa! Está é a dona Madalena, professora de catecismo da Cruzada! Ela dá umas aulas maravilhosas! - E, feitas as apresentações de estilo, Léa passou a dedicar a atenção para outros convidados, em especial Guilherme, menino de quase quinze anos e com o qual ela vinha namorando “escondido” fazia dois meses.

Não foi preciso mais do que o tempo de escassos minutos para Madalena sentir-se deslocada na festinha. As meninas e meninos faziam barulho; a música estava alta; os pais de Léa tinham ido dar atenção aos adultos que haviam sido convidados, gente que Madalena não conhecia. Isolada em um canto da sala onde os jovens já ensaiavam passos de dança, Madalena não sabia o que fazer. Veio-lhe vontade de ir embora para seu cubículo no pardieiro onde morava de aluguel, mas achava que a saída abrupta iria desgostar a aniversariante. Assim, disciplinadamente forçou-se a ficar mais meia hora, deixando que seu olhar vagasse em volta, por não ter outra coisa que fazer. Foi nesse momento que viu o bibelô e se decidiu imediatamente a furtá-lo.

A estatueta de biscuit tinha um tom de mármore rosado e media menos de dez centímetros de altura. Representava uma bailarina com o seu tutu de filó, imobilizada em eterna ponta. Um dos braços estava acima da cabeça, a mão graciosamente curva; o outro, o esquerdo, fazia sutil ângulo com o corpo grácil. O rosto apresentava-se maquiado; o cabelo em coque ostentava um diadema onde cintilava uma pedra azulada. No rostinho perfeito destacava-se um sorriso em que, pela curvatura dos lábios, era possível entrever um tom delicadamente zombeteiro.

Ao ver o bibelô, Madalena sentiu seu coração dar um salto. Era como se a bailarina tivesse piscado para ela, enquanto os lábios finos substituíam o ar de troça por um sorriso convidativo.

- “Meu Deus, livrai-me da tentação! Libera me, Iesu”, pensou a catequista. Mal acabara de enunciar o nome de Jesus e já, com a mão direita veloz como o bote de uma cascavel, surripiou o bibelô da estante em que se encontrava entre outros enfeites, colocando-o na bolsa.

Madalena deixou de lado qualquer prurido de boas-maneiras, sentindo urgência de fugir com o objeto que furtara. Alegando compromisso com o pároco, despediu-se da aniversariante e dos pais dela, saindo para a rua. Quase a correr, tomou o caminho de casa.

- “Meu Pai Eterno, perdoai-me! Como é que pude virar ladra de uma hora para outra?” - angustiava-se Madalena.

Chegando ao cortiço, empurrou a caquética porta principal e esta, rabugenta e a gemer nos gonzos, deu passagem à catequista.

Madalena subiu aos pulos os dezesseis degraus, abrindo com dificuldade a porta do quarto-e-sala, a mão a tremer como se acometida do mal de Parkinson. Chutou os sapatos para um canto da saleta que se achava mal iluminada por uma lâmpada incandescente de 40 velas. A catequista tirou o bibelô da bolsa e se deteve a admirar embevecida a minúscula bailarina. Era perfeita! Perfeita em todos os mínimos detalhes. O rostinho, esse, então, parecia de moça vivente.

- “Vade retro, Satanás! Minha Santa Maria Madalena, valei-me! Não me deixeis perder minh’alma, único bem que me resta nesta vida até hoje honestamente vivida!”, suplicava a catequista. E, quanto mais ela mirava e remirava o bibelô, mais fraca se tornava sua vontade de devolvê-lo aos seus donos.

Em toda sua existência pontilhada de dificuldades, órfã de mãe aos seis anos e criada por um pai que a adorava, mas que, pelo tanto de boçalidade de que lhe era formado o caráter, nunca fora capaz de externar o mais tênue gesto de carinho, Madalena, sozinha no mundo e beirando os cinqüenta, na infância nunca desfrutara do convívio com outras crianças; nem na infância, nem quando se pusera mocinha. Não aprendera a brincar. Na escola, via com terror os meninos. As meninas eram seres estranhos, como que de outro planeta. Aí pelos quatorze anos concluiu o ensino fundamental. Deixando de vez a escola, encerrou-se na casinha erigida sobre palafitas nos alagados do bairro Estrada Nova. Aos vizinhos, achavam ela e o pai carroceiro, bastavam-lhes secos “bons-dias, boas-tardes, boas-noites”. Os dias de Madalena eram dedicados a rezar, a estudar livros católicos de fácil leitura emprestados da biblioteca da paróquia e a cuidar do pai, cozendo-lhe a bóia e remendando-lhe os andrajos, quase todos recebidos gratuitamente nos bazares de caridade promovidos pela igreja. O único mimo do casebre, além do fogão a querosene de duas bocas, era um roufenho rádio a válvula que passava o dia inteiro sintonizado na então única emissora, a PRC-5, a “voz que fala e canta para a planície”. À hora do almoço e depois da prece do meio-dia (“Meio-dia de lutas, meio-dia de esforços. Depois de um lauto almoço, uma boa sesta com um cigarro Aspirante. E lembre-se: depois de um bom Aspirante, somente outro Aspirante.”). vinha o “Calendário Social Simões, patrocínio do guaraná Simões, o sabor da Amazônia”, em que o doutor Edgard Proença anunciava os aniversariantes do dia, tendo como música de fundo a humoresque de Dvorjak. A notícia dos natalícios levava Madalena a sonhar com as festas a que nunca compareceria.

Pouco antes da morte do pai, a cujo enterro (pobre, porém muito digno) Madalena compareceu, somente ela e o padre oficiante, Madalena já se havia mudado para o cortiço. O aluguel era garantido pelo salário que recebia do Cura da Sé. Morto pai, Madalena continuou levando aquele viver sensaborão, com tempo integral e dedicação exclusiva às coisas de sua religião, às atividades da Cruzada Eucarística e ao ensino do catecismo.

Atormentada pelo furto que praticara, Madalena torturava-se:

- “Só pode ser coisa do Demo... Só pode ser artes do Cão Danado... Meu Deus, dai-me forças!”

Contudo, ainda que fosse tentação das brabas, não se exclui a possibilidade de que o apego com a estatueta resultasse do sentimento de carência afetiva a brotar, incontrolável, no coração da catequista. Durante quase cinqüenta anos, Madalena jamais conhecera o carinho da mãe; dela própria tornar-se mãe, só de pensar já estaria em pecado mortal: “Homem? Deus me livre!!! Antes uma boa morte!!!”. Nunca tivera amigos, nem amigas. Não se lembrava de ter escutado nenhuma palavra de ternura de seu pai: este, passara toda sua vida fechado em si mesmo, esfalfando-se no serviço de carroceiro do qual tirava o sustento da casa. Enfim, fosse por obra do lado místico, fosse por preceito da psicologia, Madalena não conseguia reunir forças para desfazer-se do bibelô. A minúscula bailarina passou a ser o curso d’água por onde fluía a cachoeira de carinho represado durante cinqüenta anos de solidão e miséria afetiva.

De segunda à sexta-feira, Madalena ia diariamente à missa das seis na Sé. Aos sábados, antes das seis horas era a primeira na fila da confissão. Paga a penitência, assistia ao ofício das sete. Aos domingos, ia, pela manhã, à missa das nove, para voltar à tarde, à missa das cinco, o horário mais chique, ato litúrgico a que compareciam os ilustres de Belém, entre estes a elite que morava no bairro da Cidade Velha. Em cada missa a que ia, Madalena comungava, mantendo regularmente alimentado seu espírito com o Místico Corpo e Sangue de Jesus.

Confessava uma vez por semana, sempre aos sábados de manhãzinha. Há muito tempo vigia o trato feito com o padre confessor: penitência, no mínimo um terço completo, do Creio-em-Deus-Pai inicial, assinalado pelo crucifixo, até a derradeira Ave-Maria, marcada pela décima continha do quinto e último mistério. A essas cinqüenta e três Ave-Marias, seis Pai-nossos, o Credo, a Salve-Rainha (da medalhinha), e mais os seis “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo”, Madalena nunca achava excessivo acrescentar umas rezinhas a mais, tipo “Santo Anjo do Senhor / Meu zeloso guardador” e “Ó meu Jesus, perdoai-nos / Livrai-nos do fogo do inferno”. Esses pios acréscimos, achava Madalena, valeriam como reserva técnica diante do Pai Supremo, na hora do julgamento da alma pecadora dela. Ela cria que as preces suplementares reforçariam a garantia de que seu espírito não iria ficar fervendo eternamente no caldeirão do Pedro Botelho. E quando assim arrazoava com seus botões, Madalena acabava convertendo o terço penitencial em um rosário completo, o que a levava a ficar de joelhos rezando três terços de uma enfiada só, ao fim acrescido de algumas reservas técnicas. Assim procedendo, achava a catequista, afastava até o estágio probatório pós-morte a ser cumprido no Purgatório e iria direto para a Casa do Senhor.

O aniversário de Léa fora comemorado na noite de domingo. Naquele dia de seu pecado mortal, Madalena assistira suas duas missas, comungando de manhã e de tarde. Estava cheia de graça, o espírito alimentado matutina e vespertinamente pelo Corpo e Sangue do Salvador. Mas, como já antes se narrou, a piscadela da bailarina em miniatura venceu os escrúpulos da catequista, e essa acabou transgredindo o mandamento de não furtar.

Na segunda-feira que se seguiu à mal dormida noite do domingo em que virou ladra, Madalena, automaticamente e como fizera durante toda sua vida, vestiu-se e foi à missa das seis na Catedral.

Sagradas as Espécies, o sacerdote, oficiando em português como manda a liturgia pós-Concílio, pronunciou, solene:

- “Felizes os convidados para a Ceia do Senhor. Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.”

A essa fórmula, responde a congregação: - “Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e estarei salvo.”

Madalena tentou juntar sua voz ao coro dos fiéis, mas as palavras não saíam. Engasgou. Lágrimas inundaram-lhe as pálpebras. Genuflexa, a catequista baixou a vista, sem coragem de continuar olhando para o altar, onde simbolicamente estavam sendo revividos os últimos momentos do Cristo, antes de Seu martírio na cruz.

A partir de terça e até a sexta, Madalena perdeu a coragem de ir à missa. Dizendo-se doente, pediu dispensa da catequese. Trancada em casa, punha-se a adorar e, ao mesmo tempo, a maldizer o bibelô. Sem coragem de devolvê-lo aos donos, repetidas vezes ensaiou jogar a bailarina no lixo. Porém, quando sua mão já empolgara a bailarina para jogá-la fora, Madalena acabava trazendo o biscuit até bem pertinho de si. Era o último abraço, dizia, o abraço da despedida:

- “Ah, meus amores”, clamava a catequista, olhando a bailarina com insopitável ternura. – “Não me olhe com esse seu olhar tristinho... Estou quase vendo a lágrima saindo desse seu olhinho mimoso... Oh, minha ternura, não fique com medinho que mamãe não vai fazer essa maldade com você” – e enchia a estatueta de beijos estalados, comprimindo-a ao peito seco e mirrado.

A Igreja Católica tem, como um de seus Dogmas, a Transubstanciação das Santas Espécies. Para o católico, é artigo de fé que o pão e o vinho, depois de consagrados pelo sacerdote, misticamente transformam-se, o pão, na carne; o vinho, no sangue de Jesus. Assim, comete gravíssimo sacrilégio a pessoa que, sabendo que está em pecado mortal, participa do Sacramento da Comunhão e profana a Eucaristia.

Para comungar, a pessoa precisa estar no chamado “estado de graça”. Ou seja: não pode ter cometido nenhum pecado mortal. Ou nunca pecou, o que, mesmo entre os santos da Litania Católica, praticamente nunca aconteceu; ou, se infringiu a Lei de Deus, precisa de se submeter ao Sacramento da Penitência. Isto é: precisa confessar seus pecados a um sacerdote; arrepender-se de todo coração da falta praticada; receber do padre a absolvição e pagar a penitência. Cumprido todo esse rito, a pessoa reconciliou-se com Deus e só então pode receber a Eucaristia. O mais importante elemento é o arrependimento, professado no Ato de Contrição, em que o fiel diz estar firmemente arrependido de ter ofendido a Deus por pensamentos, palavras e obras, atos e omissões, pedindo perdão e propondo-se a nunca mais voltar a cometer o mesmo pecado.

A história do catolicismo romano registra casos em que pessoas que não haviam sido absolvidas de pecados mortais praticados foram receber a Comunhão. O primeiro caso teria ocorrido por volta do Século VI, na Itália. Um pecador insistiu em comungar. Ao receber a hóstia e o vinho consagrados, a boca do herege encheu-se de sangue, tendo ele expelido um pedaço de carne humana. Estudos científicos de casos análogos mais recentes comprovaram que as amostras coletadas eram de carne humana e o sangue, igualmente humano, era do tipo AB: o mesmo existente no Santo Sudário guardado em Turim, sendo esse o manto com que foi envolvido o corpo de Cristo quando foi baixado da cruz.

O católico praticante acredita que, quando alguém está impuro, não se achando em estado de graça, mas mesmo assim resolve receber a Eucaristia, as Santas Espécies irão transformar-se, na boca do profanador, em um pedaço de carne e uma pouca de sangue. Carne humana. Sangue humano.

Madalena era fervorosamente católica. Cria piamente nos dogmas de sua fé. Mais ainda: era professora de catecismo. Ela mesma há anos contava aos seus jovens catecúmenos histórias de pecadores que profanaram a Santa Eucaristia, hereticamente comungando em pecado mortal do qual não tinham sido absolvidos. Resultado: na boca daquele pecador, a hóstia virou carne humana; o vinho, sangue.

A catequista, desde terça que não tinha voltado à igreja. No sábado, encheu-se de coragem e, de manhã bem cedo, postou-se na fila da confissão. Saíra praticamente fugida de casa, evitando olhar para a mesinha tosca onde pusera o bibelô. Trancou a porta do quarto-e-sala e desabou pelos dezesseis degraus, correndo para a Catedral.

Os sinos tocavam, alegremente tangendo as ovelhas para que viessem participar da Ceia do Senhor.

Eram seis horas, e a fila de penitentes já estava longa. Madalena não foi a primeira, mas quando sua vez chegou dirigiu-se pressurosamente para o confessionário. Ajoelhou-se, sentindo a almofada macia, diante da portinhola aberta onde, protegido por uma tela que dificultava ao confessor saber quem estava a confessar os pecados, e ao penitente identificar o confessor.

Ajoelhada, Madalena persignou-se: - “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.” Dirigindo-se ao confessor, pronunciou, com voz firme:

- Padre, dai-me a vossa bênção porque pequei.

- Tá bem, minha filha... Tá bem. Um terço de penitência está de bom tamanho. Vá e não volte a pecar. Ego te absolvo in nomine Patris, et Filii, et Spiritu Sanctis, finalizou o sacerdote, fechando a portinhola e dirigindo-se para a outra parede do confessionário, onde outro fiel já estava ajoelhado, aguardando.

- “Eu tentei”, dizia-se Madalena. – “Eu bem que tentei...”

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

O CANTO DO CISNE

Deslizou pelas águas plácidas e um véu de tristeza encobriu seus olhos. Sabia que nunca mais veria aquela paisagem de sonho, aquele verde que cobria as margens do lago em que vivera durante tanto tempo. Pensou nas pétalas das flores que se debruçavam sobre o lago, e que caíam, quando chegava o tempo das flores caírem. Se as árvores ficavam menos belas, o lago, em compensação, enchia-se de mil variadas cores que só as flores primaveris têm.
Pensou em quantas primaveras passara ali, e esboçou um sorriso. Pensou nos verões da sua adolescência, quando os hormônios da juventude o levaram a cometer loucuras mil, e pensou que fora um tempo perdido. Tempo bom, era o da quase senectude que finalmente atingira. E pensou que, no inverno da sua existência, apesar de todas as fêmeas que lhe povoaram o caminho da vida, é que tinha encontrado a sua metade, aquela que fazia com que finalmente, após tanto tempo, se sentisse um ser por inteiro, aquela que lhe fora prometida pelos deuses das águas, quando sequer suspeitava, que estava destinado a nascer para reinar, soberano sobre todos os da sua espécie.
E perdido nos pensamentos, que tal qual um filme antigo, rodavam devagar nos olhos da sua imaginação, não a viu deslizar, vinda da outra margem do lago, na sua direção. O filme interrompeu-se para que ele pudesse apreciar na sua plenitude, aquela fêmea de beleza ímpar, que fizera com que o seu coração batesse mais forte, e voltasse a sonhar e a sentir sensações que julgara sepultadas para sempre, no lodo da vida que deixara para trás. Sorriu mais uma vez, mas era um sorriso diferente. Nem Salomão, em toda a sua glória, tivera tesouro mais precioso. Negra e bela, o sol coruscava, quando refletido na plumagem de ébano que lhe recobria o corpo, como se fosse uma rainha de Sabbah mil vezes mais rica e bela.
Foi nesse momento que sentiu no peito, a dor dos que amam demasiado, e sabem que a vida se lhes escapa nas dobras do tempo. E então chorou. Chorou e cantou. As lágrimas, apenas duas pérolas translúcidas, que tombaram dos seus olhos tristes para o lago belo e insensível. O canto, seu último canto, seu canto de morte, ecoou por todo o lago, subiu as serranias próximas e perdeu-se na imensidão dos céus.
Era o sinal para que os deuses abrissem as portas do paraíso, destinado aos cisnes que amaram como só os cisnes podem amar entre todos os seres vivos. Quando finalmente o belo exemplar negro de cisne fêmea chegou até ele, encontrou apenas um corpo branco, como nenhum outro cisne branco conseguira ser, desde que o Grande Cisne criara o Universo, sobre o lago que ondulava tristemente, como que movido por uma compaixão inexplicável.
E como era negra, bela e fêmea, pensou distraída e conformada que era destino dos cisnes velhos morrerem, quando era chegado o tempo dos cisnes velhos morrerem. Não sabia que tinha sido ela, em realidade, a coisa mais importante que ocorrera na vida daquele ser majestoso, que fora um dia o rei do lago. Não sabia que os cisnes só cantam uma vez na vida. Exatamente quando sabem que é chegado o momento de partir para nunca mais voltar. Não sabia que tinha sido ela, seu último sonho, sua última quimera, o seu último e verdadeiro amor.
E por não saber, afastou-se dali, deslizando negra, altiva e bela, na direção de um jovem cisne que a esperava do outro lado do lago.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

UM HOMEM CONVICTO

Era um homem de muitas convicções, mas na verdade não tinha nenhuma, pela simples razão de que quem tem muitas convicções, termina por não ter nenhuma.
Nascido em família católica apostólica romana, tinha, naturalmente, cultura católica, muito embora de há muito não mais praticasse os ritos recomendados pela Santa Madre Igreja Universal. Isso, porém, não o impedia de se sentir católico e tinha a convicção de que jamais migraria para outra religião. Tanto que aquele Deus poderoso e cruel de que nos fala o Antigo Testamento o atraía fortemente. É destino dos homens, sentirem-se atraídos para a órbita dos poderosos. Por outro lado, o homem mais doce que o mais puro mel de abelha sequer podia comparar-se-lhe, a quem chamavam Jesus (Ieshua, na sua língua natal, o aramaico), também o atraía muito fortemente. Afinal de contas, raros são os que fazem a opção preferencial pelos órfãos, pelos fracos, pelos desvalidos, pelos doentes, pelos deserdados da sorte de toda ordem. E fora exatamente o que fizera aquele homem divino que nos ensinou tudo, e do qual não aprendemos nada.
E assim foi por longos anos, até que a dor máxima que a vida quando quer, sabe inflingir aos pobres humanos que vagueiam suas tristes vidas pelo mundo dos homens o atingiu – a morte da mulher amada, a sua outra metade, a sua razão de viver, o seu elo perdido. E chorou lágrimas de sangue. Desiludido de tudo e de todos, não perdou nada e nem ninguém. Numa espécie de loucura, não perdoou sequer o Todo Poderoso. Foi por isso que se tornou ateu. Não um ateu à toa, não um ateu de araque, não um ateu daqueles que dizem quando conseguem o que desejam muito: “Graças a Deus. Não, ele não. Tornou-se ateu total, ateu convicto. Afinal de contas era um homem de muitas convicções.
Mas, como também é próprio desses estranhos animais que são os homens feitos à base” de carbono, continuou procurando respostas para as grandes interrogações que os caminhos da vida se lhes apresentava, e não as encontrando procurou refúgio no agnosticismo¹. E então tornou-se convictamente agnóstico, naturalmente.
E como a roda do tempo não cessa nunca o seu girar, descobriu que não era extamente o que pensava ser: agnóstico, E foi por isso que procurou, mais uma vez, um novo caminho. E decidiu que seria espírita. Afinal de contas, partindo-se do pressuposto de que os espíritos existam, realmente, Alan Kardec, ou Denizard Leon Rivail Hippolité, seu nome de batismo, responderia a todas as dúvidas que o atormentavam. E mergulhou de cabeça no espiritismo, tornando-se espírita convicto, evidentemente.
E isso durou até o dia em que um diabinho qualquer - para quem acredita em diabinhos – soprou-lhe a maldita dúvida sobrea existência dos espíritos. E seu mundo espiritual ruiu mais uma vez.
E assim os anos passaram. Um dia, olhando-se ao espelho, não se reconheceu. Não mais estava à sua frente, o jovem viril, belo e musculoso que fora um dia. Estava velho, totalmente velho. E ao tomar consciência da sua senectude, pensou em recomeçar sua procura do verdadeiro Deus, antes que fosse tarde demais. Foi quando, por acaso – e a vida é tão cheia de acasos que até parece que não o são – que percebeu, ao ler pela milésima vez a Vulgata, de Jerônimo, que pouco ou nada sabia dos nomes hebreus tão citados em qualquer Bíblia, desde a Septuaginta até a Êxapla, passando pela Ciríaca, a Latina Antiga, a do rei James (de James I, da Inglaterra) e outras, inclusive, naturalmente, a Vulgata (de versio vulgata). E então entendeu que precisava aprender a língua dos judeus ou hebreus. E estudando hebraico, descobriu que Jesus era Ieshua, na sua língua natal, o aramaico; Maria, sua mãe, Miriã; Moisés era (Moshe, Mochê), Rafael, Deus cura e Israel (forte como Deus), nome posterior de Jacob. E foi também que tomou conhecimento que o nome do Deus de Abraão (pai de multidões) era Elohim, mas que também atendia pelos nomes de Javeh, Jeovah, Adonai e muitos outros. Também aprendeu que o verdadeiro nome de Deus era tão sagrado que não podia ser pronunciado. Daí a a representação do nome do que tudo vê ser YHWH, o Impronunciável.
Após essas descobertas, como que enloqueceu e se dedicou apenas ao estudo dessa língua fascinante. E mergulhado em profundas e bíblicas elocubrações mentais sentiu, surgida do mais profundo do seu ser uma enorme dor. Percebeu num átimo, que chegara o momento de dizer adeus à vida neste planeta de tantas amarguras e, surpreendemente, não teve medo. Antes, um enorme alívio. E por que se tornara um judeu convicto gritou: “Adonai, recebe em teus braços o meu espírito”, e tombou. Ao chegar ao chão a vida já o abandonara para sempre. Mas Adonai, o Misericordioso, ao ouvir aquele pedido, percebeu que aquele homem tão atormentado merecia seu perdão. E esboçando um leve sorriso de satisfação, abriu os braços para receber aquele homem tão necessitado de paz. E o espírito do homem convicto adormeceu ao lado do Senhor, absolutamente convicto que nunca mais derramaria uma lágrima sequer, per omnia secula seculorum, pois estava escrito nas estrelas que aquele que nascer de novo, jamais morrerá. Shalom!