segunda-feira, 29 de novembro de 2010

VIVER NÃO É PRECISO

O rapaz acordou espantado. Olhou em volta e não reconheceu o lugar, muito embora tudo o que o rodeava não lhe parecesse estranho. Tentou levantar-se. Sentiu dificuldades. O corpo parecia-lhe mais cansado que o usual. Com muito esforço saiu da cama e dirigiu-se, levemente encurvado, em direção ao banheiro. Um banho e tudo ficará melhor, pensou. Foi quando se olhou no espelho e se assustou. Não! Pensou estarrecido, aquilo não podia ser verdade! Devo estar sonhando, disse a si mesmo. Melhor dizendo, devo estar tendo algum pesadelo. Tranquilizou-se com a ideia. Daqui a pouco acordaria e tudo seria apenas uma lembrança ruim, consolou-se. Mas, notou que o sonho - ou pesadelo - parecia-lhe real demais para não ser real. Olhou-se novamente no espelho. Muito embora ele continuasse sendo ele, o aspecto era de um homem velho. Velho e terrivelmente cansado. Cansado de viver, cansado de tantos sonhos perdidos, tantas falsas ilusões, tantas quimeras que ficaram na estrada da sua vida já tão gasta, tão rota, tão inútil. Não lembrava bem se ainda tinha filhos. Mulher, com certeza, não tinha mais. Tinha consciência que mulheres não gostam de homens tão velhos, tão desgastados na luta inútil da sobrevivência.

A clareza do que ocorrera começou a tomar conta de si. Teve vontade de chorar. Seria tão mais fácil não acordar mais. Acreditara durante tanto tempo que o sono é a morte na certeza do acordar, que até desejava o contrário. Quando o grande cansaço se apossa do corpo, da mente e da alma, sabe-se que é tempo de partir. Que bom seria, pensou, se os homens fizessem como os velhos elefantes africanos, que sabem quando a morte está próxima. Deixam o bando e partem sozinhos, em direção ao jamais encontrado cemitério perdido dos elefantes, considerado o Eldorado dos caçadores e negociantes das valiosas presas de marfim dos velhos elefantes.
Mas os homens não têm a dignidade dos velhos elefantes. Por isso tentam viver, até mesmo quando viver não é mais preciso. Tanta coisa é preciso. Viajar é preciso, cantar é preciso, navegar é preciso, voar é preciso, sonhar é preciso. Até mesmo votar é preciso. Mas, viver, às vezes, não é preciso. Os que se apegam à vida, quando viver não é preciso, são os homens que envelheceram inutilmente.
Velho! O que deveria ser uma honra e um prêmio passa a ser uma vergonha, uma carga pesada, uma culpa não merecida, um arrastar de pés sobre sandálias muito gastas, elas também, num certo sentido, culpadas de terem ultrapassado o tempo permitido às sandálias existir.
E um dia, o homem velho que acordou pensando ser novo, ao tomar consciência real de que o tempo passou e não voltará jamais, desaba para dentro de si mesmo, como um buraco negro psicológico, até desabar para o buraco negro da sepultura que, faminta, o chama de boca escancarada, sabendo que a sua fome de velhos homens velhos jamais será saciada.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

... E A MORTE CHOROU

O homem pregado na cruz olhou para o passado e ficou sem entender o que havia acontecido. Tudo o que sempre quisera, tinha sido levar paz ao coração de uma humanidade tão atormentada, que de humana tinha bem pouco. Mas como era de seu feitio perdoou-a uma vez mais. Lembrou-se do pai, um carpinteiro tão devotado à esposa, que acre-ditara sem duvidar por um instante que fosse, naquela estranha história de concepção sem pecado. Se ou-trens não entenderam, ele entendeu porque era da sua natureza a compreensão absoluta de tudo o que há. Lembrou dias felizes, quando esculpia pássaros de barro, dava-lhes um sopro e se divertia vendo-os criar vida e voar em direção ao azul do céu de Israel, terra tão bela e tão conturbada, que não conheceria paz até o final dos tempos, porque assim estava escrito que seria. Pobre Israel! E derramou uma lágrima solitária pelo rosto vincado de dor. Lembrou seu breve tempo de contador de parábolas, e seu coração encheu-se de conforto, achando que aqueles ensinamentos seriam transmitidos geração após geração até a consumação dos séculos. Lembrou de fatos que jamais seriam esquecidos. A viagem para o Egito, feita em lombo de burro, era um verdadeiro épico. Principalmente se levado em conta, que seu séquito era composto apenas de uma mulher de simplicidade extrema e seu marido. Gostava mesmo, era de lembrar seu nascimento. Aquela cena do presépio, pressentia, ficaria gravada na mente dos homens de boa vontade para todo o sempre. Mas houvera os tropeços e os enganos. Judas tinha sido o maior deles. Como pudera confiar naquele homem, indagava-se desde o momento em que fora preso?

A dor nas pernas quebradas doía demais. Sabia que não suportaria por muito tempo aquele sofrimento. Aqueles romanos sabiam como inflingir dor a alguém. De repente, deu um grito exasperado. Que necessidade tinha aquele soldado, de furar-lhe o ventre? Mereceriam esses seres de carbono, continuar sua miserável existência?, refletiu por um átimo de tempo, para arrepender-se em seguida. Como pudera pensar desse modo, logo Ele, que fora enviado para salvar os pecadores do mundo? Mas eram tão cruéis, esses homens que o Pai enviara para a dura missão de salvá-los. Às 15h não mais suportou tanto sofrer. Levantou os olhos para o alto e bradou: “Elli, Elli, lema sabachtani? O rosto pendeu sobre o peito, arfou um pouco mais e expirou, pondo fim à sua permanência na Terra dos Homens.
Nas fímbrias do Universo, bem dentro do lado obscuro do espaço sem fim, uma figura sombria enco-lhia-se numa das dobras do tempo. Estava triste. Mais que isso, estava amargurada. Começara sua existência no mesmo momento em que fora criado o primeiro vivente. Desde então matara sem cessar. Era a sua função. Por isso, o estereótipo que fizeram de si: uma Dama sombria, portando sempre a foice com que cortava o liame que prendia os seres à vida. Mas até ela, achara injusta a morte do Homem que acabara de matar. E por não suportar a missão de que a haviam encarregado, e à qual não poderia fugir, a Morte encolheu-se um pouco mais sobre si mesma, pôs as mãos descarnadas sobre o rosto descarnado também, e pela primeira vez em toda a sua existência, chorou como nenhum ser chorara antes e nem choraria depois.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

D'US E O TEMPO


Diz a Bíblia, que Deus já existia antes mesmo do início dos tempos. O início dos tempos é um dos grandes mistérios com os quais o homem já defrontou. Primeiro, porque se o tempo é infinito não terá fim. Por conseguinte, não pode ter tido início. Se não teve início, como D’us poderia existir antes do que não teve início? Dúvida para dilacerar qualquer crente que não seja completamente crente. Mas este tem seu próprio contraditório: como duvidar, se o seu princípio filosófico é montado, não em cima do conhecimento, que só vem a partir da dúvida, mas em cima da fé. E como é difícil crer. Só os que não crêem podem entender do que falo.
É mais fácil e mais confortável, mas de imprudência a toda prova, crer na ilusão da mulher amada, do que acreditar no que já era antes de ser; no que tem 72 nomes e cujo nome verdadeiro é YHWH, ou seja, o Impronunciável. Sem contar, naturalmente, com o grego Theós, o catalão Déu, o espanhol Dios, o aragonês Ridiós, o francês Dieu, o bretão Doue, o italiano Dio, o inglês God, o alemão Gott, o dinamarquês Gud, o norueguês Herregud ou Herre Gud, o sueco Herregud ou Gud, simplesmente. Os muçulmanos, árabes ou não, dizem Allah. Mas dizem, também, que o Altíssimo teria cem nomes, dos quais o último seria Impronunciável. Finalmente, temos o esperanto Mia Dio (Meu Deus), isto sem contar com o eslavo Bog, o sânscrito Ishvara, El no judaísmo, onde antes pontificou Elohim, substituído por Javeh e Jeovah, e onde aparece também, o tetragrama YHWH, que se acredita referir-se à origem henoteística; o hindu Krishna-Vasudeva na Bhagavata ou, posteriormente, Vixnu e Hari, ou recentemente Shakti.
Mas, a partir do momento em que passamos a nos referir a nós mesmos com o sentido do existir próprio, momento esse que não sabemos precisar quando ocorreu pois já existíamos antes, ainda que sem a consciência do existir, é que tentamos administrar o tempo, o precioso e pequeno tempo da nossa existência. E como é difícil fazê-lo.
Determinamos então que há um tempo para tudo. Um tempo para nascer, um tempo para viver e um tempo para morrer. Neste meio tempo, temos de arranjar tempo para outras coisas, que no nosso entender, deverão preencher o tempo vazio das nossas vazias existências. Passamos a exigir, criar ou ter um tempo para trabalhar, um tempo para comer, um tempo para dormir. Um tempo para dançar, para sorrir.
Mas temos que ter também, um tempo para sofrer, um tempo para derramar toda a lágrima que há. Um tempo para a vingança. Mas não há tempo para o perdão. Perdoai-me pelo amor de D'us, deveríamos bradar aos céus todo santo dia, se é que algum dia é santo, se é que alguma coisa é santa. Um tempo para se arrepender. Mas não há tempo para o arrependimento. Temos que ter tempo para tudo, mas não há tempo para nada.
A maré do tempo virou, É tempo de partir para o outro lado do tempo. Mas se tempo houver, cante. Cante com toda a alma, com todo o coração, com toda a devoção, como cantou Davi, como cantou Salomão, como eu cantava quando tempo havia para cantar. Como cantava Vinícius. São demais os perigos desta vida...

FAÇA A SUA PARTE

Muito se tem falado da violência em todos os campos da sociedade brasileira. Violência, sabe-se, é um produto natural, na medida em que a própria vida é, por si só, um ato de violência. Apenas como exemplo, para que qualquer forma de vida viva, é necessário que uma outra forma de vida qualquer morra. É a cadeia alimentar sem a qual a própria vida não existiria. Mas, considerações filosóficas à parte, do que queremos realmente falar, não é sequer da violência que se institucionalizou há poucas décadas neste país, outrora um dos mais pacíficos do mundo. O quê fizemos das nossas próprias vida? O que fizemos e continuamos a fa-zer das vidas de nossos filhos e da vida dos filhos de nossos filhos? Como foi que permitimos que, nos últimos trinta anos, assassinássemos e fôssemos assassinados em número superior a um milhão de vidas humanas?
Que papel estamos representando na educação dos nossos jovens? Que papel representamos, realmente, nas nossas escolas? Alunos e professores, são aliados ou adversários? E qual o papel do educador social na prevenção da violência? A triste verdade é que não temos respostas para todas essas perguntas.
A violência protagonizada pelos jovens nas escolas é uma realidade inegável. A sociedade terá que se organizar e insurgir-se ativamente contra esse fenómeno, sob pena de desaparecermos, mergulhados num verdadeiro banho de sangue. Sabemos que, pelas mais diversas razões, a família, como a conhecíamos, destitui-se da sua função educativa.
E tanto isso é verdade que, será que poderíamos, todos, responder a algumas perguntas bem simples? Uma: Qual a última vez que você, pai, mãe ou chefe de família, fez uma refeição com seus filhos, inte-ressando-se pelo que eles fazem, participando mais ativamente da vida dele? Qual a última vez que sua família se reuniu e rezou unida, pedindo misericórdia ou proteção a Deus Todo-Poderoso? Qual a ultima vez que você foi à escola e perguntou a quantas andava o comportamento de seu filho?
Talvez a solução tenha seu princípio por aí porque, se continuarmos assistindo o triste espetáculo de alunos agredindo verbal ou fisicamente seus professores, sem que a punição exemplar venha a galope; se continuarmos assistindo, impassíveis, a agressão de estudantes contra estudantes; se continuarmos assistindo com deboche e um certo sorriso nos lábios, o quanto seu fi-lho é macho, então, lamentamos informar, nem o próprio Deus nos salvará, porque está escrito: “Faz da parte, que Eu te ajudarei.” E é isso que não estamos fazendo.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

CINZEIROS NÃO FALAM

Lá estava o cinzeiro sobre a mesa. Não tinha nada de excepcional. Era um cinzeiro como milhões de outros, espalhados nos escritórios, nos bares e nos lares. Olhei mais detidamente, e não sei se foi o cheiro acre da espelunca em que me encontrava, ou se o encaracolado azulado e hipnotizante que subia da ponta de um cigarro acesso, já meio acabado, assim como podia simplesmente ser o efeito da meia dúzia de doses de conhaque que ingerira, sem sequer sentir-lhe o gosto. A única coisa que me interessava, era o queimar garganta abaixo, provocado pelo conhaque forte e de terceira, que meus poucos trocados permitiam tomar, e a tonturinha que a leve embriaguez provoca, livrando-me do mundo real e me transportando para um outro onde tudo é possível. Até mesmo olhar a morte e o fracasso de frente. Mas, o certo, é que por qual motivo fosse, juro que ouvi o cinzeiro falar. Sua voz, nítida, como convém a um cinzeiro de vidro, disse-me com ar interrogativo:
- Tens idéia de quantos fumantes antes de ti, já estiveram sentados aí onde estás, com os mesmos problemas, os mesmos cigarros, a mesma embriaguez, o mesmo ar fracassado, a mesma voz rouca de quem não escapará do câncer na garganta? Apalermado com o que ouvira, e com a voz rouca de quem não escapará do câncer na garganta, respondi:
- Claro que não. E dei o assunto por encerrado. Mas ele, o cinzeiro, parece que estava a fim de conversar. Até onde se sabe, cinzeiros não falam. Quem sabe não fosse eu o primeiro a ouvi-lo e dar-lhe trela, daí a insistência em falar?
- Pois é, insistiu ele. Muitos, antes de ti, aqui estiveram. Ouvi com paciência suas lamúrias e o relato de seus dramas pessoais. Lares desfeitos, empregos perdidos, filhos mal amados, auto piedade, prostitutas arrependidas, vidas malsucedidas, enfim. Não sei por que, bêbados e fumantes adoram contar suas vidas, seus fracassos. Só não falam de sucesso. Talvez porque, só os tolos gostem de falar do próprio sucesso. O problema, aduziu, é que eu não fumo. Pra dizer a verdade, odeio fumo e fumantes. Mais do fumo, condoeu-se, vendo uma certa expressão de tristeza em mim. Olho pra você e vejo o drama da vida real, disse, contorcendo-se levemente. O problema é sempre mulher, não é? E respondeu ele próprio:
- Claro que é mulher. E mulher casada. Mulheres casadas só servem para ser infelizes, e tornarem amantes apaixonados infelizes também. Não gosto disso, acaba em morte.
E eu lá, abestalhado com o que ouvia. O maldito cinzeiro parecia ler pensamentos. Sou marinheiro velho. Já vi de tudo na vida. Suportei todas as tempestades que a vida pode infligir a alguém, mas cinzeiros falarem? Afinal de contas, em que mundo vivemos? Terei enlouquecido?
- Não, meu amigo - disse o cinzeiro, colocando em evidência uma amizade que não existia. Cinzeiros, ao que eu saiba, só serviam como repositórios de pontas de cigarros fedorentos e nada mais. Amizade entre fumantes e cinzeiros, jamais. É quase como se fosse possível amizade real, sincera, entre o bêbado e copo.
- Esta mulher vai te perder. Ficarás sem dormir, sem comer, fumarás mais e beberás muito mais. Não pensarás em mais nada, obsedado por ela. Teu fim será a sarjeta da qual não estás tão distante assim, sentenciou.
Acho que foi naquele momento que resolvi acabar com tudo. Sem que ninguém percebesse - e pra dizer a verdade ninguém estava ali pra perceber coisa alguma - saquei o revólver, coloquei-o na boca e disparei. O barulho do tiro confundiu-se com o barulho da morte do cinzeiro que, indo ao chão, quebrou-se em mil pedaços. Subimos todos. O meu espírito, agora em paz, subiu em direção ao infinito, ladeado por uma encaracolada fumaça azul e fragmentos de um cinzeiro que descobriu tarde demais que cinzeiros não falam. Ou não deveriam falar.

domingo, 14 de novembro de 2010

PORQUE HOJE É DOMINGO

Conta-nos a história que Constantino o Grande, em 312 d.C., ao ter uma visão, mudou o signo dos escudos de seu exército, adotou a cruz e venceu uma batalha que, em tese, deveria perder para Maxêncio, inimigo e rival. Por causa disso, converteu-se ao catolicismo romano e mudou o dia sagrado que era o Shabbath (sábado em hebraico) adotado pela Igreja, para domingo, o dia do Sol. Desde então, o domingo é o dia sagrado dos católicos em todo o mundo. E convenhamos que faz sentido, afinal de contas, Jesus ressuscitou num domingo pela manhã.
E porque hoje é domingo, é dia de passear, de ir à praia, principalmente se esse dia especial começar iluminado por uma bela manhã de sol. Mas nem só de praia vive o domingo. Vive também de belos e arborizados parques, vive de passeios no campo, vive de igarapés, dos quais nossa terra é rica; vive de filmes na TV, vive de ternos momentos de carinho, quando se anda de mãos dadas pela beira do rio com a pessoa amada no entardecer de um belo dia; vive também de um pouco de preguiça, enfim, é o dia em que a ordem é relaxar. Mas, tudo isso, se é bom de ser vivido, precisamos lembrar que, porque hoje é domingo, temos o dever de rezar e agradecer a D’us pelas graças e bênçãos recebidas durante a semana, e por causa disso é que as igrejas, os templos e todos os locais de adoração a Ele ficam repletos de fiéis, que só querem receber um olhar de benevolência d’Aquele que tudo pode.
Por tudo isso e muito mais, é que este cronista deseja a todos os amapaenses, a todos os brasileiros e, porque não, a toda a humanidade, um domingo muito feliz, cheio de paz e amor. Shalom.






sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O INFERNO DE DANTE

Todos já lemos ou ouvimos algo sobre a Comédia, de Dante Alighieri. Ler, mesmo, essa obra magnífica, em poucos o fizeram. Queiramos ou não, só os muito letrados já gozaram das delícias dessa obra monumental. E eu não estou entre eles. 
A prudência ensina que a documentação sobre a vida do grande bardo italiano é bastante escassa e pouco se sabe, de verdade, sobre  sua educação, família e opiniões.
A causa desse desconhecimento é o fato de que Dante passou boa parte de sua vida como exilado, em condições precárias e quase na indigência. Nossa proposição neste pequeno ensaio, é falar da parte mais importante da Divina Comédia, o Inferno. O qualificativo foi colocado por Boccaccio, a partir de sua biografia, escrita por este outro gênio da literatura italiana.
A Divina Comédia é uma obra construída segundo uma rígida simetria. São três partes: “Inferno”, “Purgatório” e “Paraíso”. Destas duas últimas, falaremos em outra ocasião. Por ora, vamos nos ater ao “Inferno”.
Dante, perdido numa selva escura, encontra o poeta latino Virgílio, cujo espírito foi enviado por Beatriz (Musa do poeta) para buscá-lo. O trajeto de Dante e Virgilio se inicia pelo Inferno, parte primeira de sua obra. A entrada do Inferno é situada em Jerusalém - onde Lúcifer teria batido ao cair do céu. O Inferno, segundo Dante, é composto por diversos círculos, que vão se estreitando até o centro da Terra. Cada círculo corresponde a um tipo de pecado, sendo que o primeiro é o Limbo, onde, na teologia cristã estão as almas dos que não pude-ram escolher Cristo porque nasceram antes de seu advento, ou porque morreram antes do batismo. A partir daí, começa o inferno propriamente dito -  os círculos podem estar agrupados  ou ter subdivisões.
Temos então que: No primeiro círculo ou Limbo, estão os ignaros e os virtuosos anteriores a Cristo, além das crianças não batizadas. No segundo círculo, estão os luxuriosos; no terceiro, os gulosos; no quarto, os avarentos e pródigos; no quinto, os iracundos, soberbos e preguiçosos. Todos esse pecadores estão agrupados no grupo dos Incontinentes. Os hereges têm um círculo exclusivo, o sexto. No sétimo círculo do inferno de Dante, estão os violentos contra o próximo (homicidas, tiranos, predadores), os violentos contra si próprios (suicidas e perdulários), os violentos contra Deus, a natureza e a arte (blasfemos, sodomitas e usurários). No oitavo círculo, estão os sedutores e alcoviteiros, os aduladores, os simoníacos, os adivinhos, astrólogos, bruxas e prevaricadores; os hipócritas e os ladrões (coitados da maioria dos políticos brasileiros), os conselheiros de fraudes, os semeadores de escândalos e cismas, os falsários de metais, de moedas, de pessoas e de palavras.    Finalmente, no nono e último círculo do inferno estão os traidores dos parentes, os traidores da pátria, os traidores dos hóspedes e os traidores dos benfeitores.
Convém saber que o nono círculo do inferno, tem quatro zonas concêntricas (Caina, Antenora, Tolomeia e Judeca) no fundo das quais há um rio gelado (Cocito) e Dite, a cidade de gelo na qual está imerso Lucifer.
Não à toa, é Dante quem diz: "Deixai toda esperança, vós que entrais (no Inferno). Em sua odisseia infernal, Dante encontra personagens históricos, figuras da mitologia antiga e do ima-ginário cristão como Virgilio (autor de Eneida), Homero (Ilíada e Odisséia), Ovídio (autor romano das Metamorfoses), Francesca Rimini (cujo ruidoso caso de adultério com Paolo Malatesta é recapitulado na Comédia), Ugolino della Gherardesca (acusado de traição pelo arcebispo de Pisa, foi preso com dois filhos e dois netos, onde teria comido seus cadáveres, numa torre onde todos morreram de fome), o papa Nicolau III, além de Ulisses e Lúcifer, que no último canto dilacera três dos maiores pecadores que o mundo já conheceu, ainda segundo Dante: Judas, o traidor de Cristo; Brutus e Cássio, assassinos de Julio César.
Talvez, quem melhor se manifestou sobre a Divina Comédia tenha sido o escritor Giovanni Papini (1881-1956), autor de obras sobre Deus e o Diabo. Disse ele: “É muito simples. É só pegar a sabedoria oriental, o logos grego, a charitas cristã, a civilita romana, Aristóteles, os árabes, os judeus, o Velho e o Novo Testamento, as tradições muçulmanas, os conhecimentos científicos da Idade Média, ...”.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

SOBRE DEMOCRACIA

já se disse que democracia, é a convivência pacífica dos contrários. Hoje, mais que nunca, é preciso que brasileiros no geral e tucujus no particular entendam que, se não primarmos pelo respeito à vontade soberana do povo, leia-se, a maioria, jamais chegaremos a lugar algum. Pelo menos a um lugar em que seja um prazer o simples viver.

Um dos pensadores que mais influenciaram o conceito de democracia nas Américas foi Alexis de Tocville (1805-1859). Dizia ele que “a democracia consiste na igualdade das condições.” Dizia mais: “Democrática é a sociedade em que: 1 - Não subsistem de ordens e de classes; 2 - Em que todos os indivíduos que compõem a coletividade são socialmente iguais (o que não significa que sejam intelectualmente iguais, o que é absurdo e que, para Tocqueville, é impossível).
Na verdade, igualdade social é a inexistência de diferenças hereditárias de condições, o que quer dizer que todas as ocupações, todas as profissões, dignidades e honrarias são acessíveis a todos.
De tal modo, a participação de todos na escolha dos governantes e no exercício da autoridade é a expressão lógica de uma sociedade democrática, isto é, de uma sociedade igualitária. É uma sociedade que não tem por objetivo o poder ou a glória, mas sim a prosperidade e a tranquilidade de um povo. Para isso, é necessária a preservação da liberdade, que é a moderação na arte de bem governar.
Tem-se, pois, que as sociedades democráticas são pouco propensas à guerra, pois a guerra faz com que a liberdade seja suprimida e com isso, a concentração cada vez maior de poder nas mãos de uma pessoa, família ou grupo. E poucas coisas são tão maléficas à democracia, logo, à liberdade, que as oligarquias. Oligarquias, sabe-se, não se originaram e muito menos são provenientes da Terra Brasilis. Mas é preciso que reconheçamos que aqui, as oligarquias fincaram raízes e prosperaram, porque encontraram campo fértil para que assim fosse.
O Brasil ainda atravessa um período em que a democracia plena ainda não criou raízes profundas. Apenas para que se tenha um ideia do fenômeno, Dilma Rousseff é a terceira presidente eleita consecutivamente no Brasil (Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e, agora ela, Dilma Rousseff). Entre todos os anteriores houve problemas de naturezas diversas.
Conscientizemo-nos pois, de que não é pequena a vitória conseguida contra as forças centralizadoras. E para que assim seja “ad infinitum”, façamos, cada um, a nossa parte. Inclusive divergindo, quando necessário.

RASTROS NO MAR

É claro que o texto abaixo não é meu. É de Antonio Machado, mais precisamente Antonio Cipriano José María y Francisco de Santa Ana Machado Ruiz, conhecido como Antonio Machado, nascido em Sevilha em 26 de julho de 1875 e falecido em Collioure, França, 22 de fevereiro de 1939, tendo sido um poeta espanhol, pertencente à Escola Modernista.
Dito isso, é necessário que mergulhemos na profundidade das linhas mais famosas do autor, os dois versos de Proverbios y cantares XXIX em Campos de Castilla:
“CAMINHANTE, NÃO HÁ CAMINHO,
O CAMINHO É FEITO AO ANDAR.
AO ANDAR SE FAZ O CAMINHO
E AO OLHAR PARA TRAZ,
SE VÊ A SENDA QUE NUNCA
SE VAI VOLTAR A TRILHAR.
CAMINHANTE NÃO HÁ CAMINHO,
SOMENTE RASTROS NO MAR.”
Quando se chega à idade da senectude, é que começamos a perceber o quanto somos tolos no longo percurso que é a vida, mais especificamente a vida de um caboclo tipicamente amazônida, que um dia decidiu conhecer o mundo exterior sem saber que o mundo inteiro cabe dentro de ti, cabe dentro da tua aldeia, como dizia Immanuel Kant.
Realmente, não há caminho. O caminho é feito ao andar. Tão simples, tão óbvio, e no entanto passamos por ele acreditando que já existia antes de ser trilhado. E se um dia pararmos e olharmos para trás, perceberemos que o que se vê é a senda que não voltaremos a trilhar nunca mais. E o que é a vida passada, perguntamos perplexos? Antonio Machado nos responde de modo bem simples: “Somente rastros no mar.”
E nesses momentos, lembro de Roberto Campos e seu Lanterna na Popa, cuja inspiração vem de um texto de Samuel Taylor Coleridge (1772-1834): “Mas a paixão cega nossos olhos, / e a luz que a experiência nos dá é a / de uma lanterna na popa, que ilumina / apenas as ondas que deixamos para trás.”