terça-feira, 5 de janeiro de 2010

FLIP NÃO DÁ OUTRO

FLIP NÃO DÁ OUTRO

Sempre tive a veleidade de escrever. Reconheço que não escrevo bem, mas, fazer o quê, se a compulsão é maior que a minha força de vontade? Eu que sempre tive a imagem de mim mesmo como sendo pessoa desprovida da maldição da inveja, descubro horrorizado que sou um invejoso, sim. Morro de inveja de quem escreve bem. É por isso que lamento não ser um milésimo sequer de um Nelson Rodrigues, o cronista do absurdo e do patético. Lamento também, estar a léguas de distância de um Rui Guilherme de Vasconcelos Souza Filho ou de um Ruben Bemerguy, nomes que por si só dispensam apresentações, tal o seu valor humano, literário e intelectual. A mim, resta então, fazer o que me é possível: segui-los. Isto, se possível for a um quelônio seguir ou acompanhar uma lebre. É por isso que, sempre que posso, cedo o espaço desta coluna onde escrevo mal traçadas linhas para quem conhece, realmente, a arte de escrever. Hoje, o espaço vai para o meu querido amigo e grande e exemplar advogado Ruben Bemerguy. Como já disse, Bemerguy dispensa apresentações e no texto a seguir, fala de um homem de quem tive a honra e o prazer de privar da amizade. Chamava-se Moisés. Moisés Zagury, um dos primeiros empresários amapaenses que, mesmo nascido em terras longínquas, era o mais tucuju de tantos outros quanto possamos tê-los, pela firmeza de caráter, pela honestidade, pela correção, por seus princípios básicos de homem franco e trabalhador, por sua lealdade, por sua falta de ambição a valores tipicamente terrenos, e pelo amor que devotava a sua esposa, Dona Raquel Zagury, mulher de honradez e beleza a toda prova. Tão bela quanto a Raquel bíblica, por quem Jacob serviu a Labão por longos 14 anos.
O texto de Bemerguy fala de um tempo que se foi para nunca mais voltar, um tempo em que éramos tão pobres, tão belos, tão inocentes. A ele, portanto. Vale a pena recordar.

FLIP NÃO DÁ OUTRO

“Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa”.

“Chico Buarque de Holanda”

“Muito embora se possa pensar, e não sem alguma razão que me decidi por uma literatura lúgubre, digo sempre que não. Também digo não ser essa uma expressão de meu luto. Não escrevo sobre os mortos porque morreram simplesmente. O faço como quem ora, sempre ao nascer e ao pôr-do-sol, em uma sinagoga feita à mão, desenhada n’alma da mais intensa saudade. Escrevo também para que os meus mortos permaneçam vivos em mim. Morreria mais apressadamente sem a memória dos que amei tanto. É só por isso que escrevo. Porque os amei e ainda os amo.
E quando esses meu amores partem e com eles já não posso mais falar, passo, insistentemente a dialogar comigo. É um diálogo franco e, de fato, inexistente. Sempre que tento assumir a função de meu próprio interlocutor, uma súbita impressão de escárnio de mim mesmo me faz parar, e aí calo. Toco a metade de meu indicador direito, verticalmente fixo, na metade de meus lábios, como a pedir silêncio a minha insensatez. Taciturno, faço vir à memória de um tudo.
É por isso e tanto mais, que ando sempre atrasado. Demoro a escrever e quando decido o faço tão pausadamente que chego a aprender de cor todo o texto. Por exemplo, se medido o amor que tinha por meu tio Moisés Zagury, há muito me obrigava a ter escrito. Mas minha inércia não é voluntária e, por isso, não a criminalizo. Não há relação entre o tempo da morte e o tempo de escrever. A relação é de amor e é eterna. A morte e a palavra, ao contrário de mim, não se atrasam. Além disso, em minha vida andam juntas, nem que seja só em minha vida. Isso já aprendi porque as sinto frequentemente desde criança, tanto a morte quanto a palavra.
E é desde criança que lembro do tio Moisés. Lá, estive muitas vezes no colo. Pensei que adulto, isso não mais aconteceria, mas aconteceu até a última vez que o vi. No aeroporto, quieto em uma cadeira de rodas, ele ia. Tinha um olhar paciente, de contemplação, de reverência a Macapá e, sem que ele percebesse, eu em seu colo observava obcecadamente cada movimento dos olhos, queria traduzir e imortalizar aquele momento. Não consegui e até hoje tento imaginar o que o tio Moisés dizia pra cidade. Acho que tudo, menos adeus. Macapá e o tio eram inseparáveis. Essa era a terra dele e ele o homem dela. Isso é inegável. Por baixo das anáguas de Macapá ainda velejam o líquido de ambos: do tio e da cidade.
O tio conheceu a cidade cedo. Ele, moço. Ela, moça. Daí foi um passo para ser o abre-alas dela. Tinha dom. Rascunhavam-se incessantemente um ao outro. Eu os vi várias vezes passeando, trocando carícias. Ela costuma cantar para ele, enquanto ele fabricava um xarope de guaraná. O Flip. Flip guaraná. Dentro de cada garrafa havia um arco-íris. A fórmula era segredo do tio e da cidade, e até hoje o é. Por isso, só o tio conseguia pôr arco-íris em uma garrafa de guaraná. Acho mesmo que o Flip era feito da seiva da cidade. Eu o tomava gut, gut.
O Flip não foi só o primeiro guaraná produzido aqui. Não foi só também a primeira indústria. O Flip, me conta a memória, foi o cenário auditivo mais preciso da minha lembrança. Era a propaganda que anunciava promoção de prêmios a quem encontrasse no guaraná, além do arco-íris, o desenho de um copo no interior da tampinha da garrafa. O copo, sinceramente, não era minha grande ambição. O sabor estava mesmo, na propaganda que vinha pelas ondas das rádios Difusora e Educadora, se bem lembro. Era o som de um copo quebrando, esquadrinhado por uma indagação seguida da solução: “Quebrou? Flip dá outro. E dava mesmo.
Não sei se por ingenuidade da infância ou ignorância, o que aquele sorteio me fixou é que tudo era substituível. Se o copo quebra, Flip dá outro. Se a bola fura. Flip dá outra. Se a moda não pega. Flip dá outra. Se o tempo passa, Flip dá outro. Se o ar falta. Flip dá outro. Se o amor acaba, Flip dá outro.
Não me cabe agora eleger um culpado pela singeleza da minha compreensão de vida. Fico cá a suspeitar do arco-íris, e nem por isso me zango. Se me fosse permitido optar entre a idade madura e o arco-íris, escolheria o arco-íris sem piscar. Mas isso não é possível, agora eu sei. A bola fura, a moda pega, o tempo passa, o ar falta e o amor acaba. Tudo, é claro, por falta do Flip.
É um desconforto viver sem Flip. Todas as vezes que a vida me recusa, eu lembro do Flip. Mesmo assim, não digo nada a ninguém. Chamo num canto os arco-íris que conservo desde tanto, faço mimos, beijo os olhos, o rosto e sossego. Vem sempre uma chuva fina. Eu me olho e a guardo. Guardo muitas chuvas. Quando se guarda bem guardadinha, a chuva não dói. Só dói é saber que Flip não dá outro. Poxa, quanta saudade do meu tio".