sábado, 27 de fevereiro de 2010

O NOME DA FOME

“Naquele tempo, com a barriga na miséria, eu vagava pelas ruas de Cristiânia, cidade singular que deixa marcas nas pessoas...”
Assim começa o romance A fome, do norueguês Knut Hansum, escritor que ficou mundialmente conhecido por causa do romance que fala daquilo que tem o mais desgraçado dos nomes, que reduz um homem a nada, um nome que transforma o mais digno dos homens em rebotalho humano: a fome. Hansum foi um profundo analista dos caracteres mais sórdidos que compõem a psiquê humana. E nada é mais sórdido, mais miserável, mais doído que a fome, pois de mãos dadas com ela, andam também a injustiça e a maldade. Não conheceu o verdadeiro sofrimento, aquele que não teve as entranhas devoradas pela fome.
Fome não é só a ausência do alimento. É a certeza atroz que não haverá nada para comer naquele dia, nem no seguinte e nem no outro. É como se toda a esperança se esvaísse pelo ralo da falta de compaixão dos homens. É como se toda a dor do mundo se concentrasse num olhar de tristeza infinita, quando não há sequer a dor para sentir no estômago dilacerado pelos sucos gástricos, que sem ter o que digerir, passam a destruir o próprio faminto.
A fraqueza é generalizada. O entorpecimento é total. Não há mais pensamento, não há mais exigências, não há mais nada. Só a certeza de que a indiferença dos que passam lépidos a caminho de suas casas cheias de alimentos, é ampla, geral e irrestrita. Deus não tinha a menor idéia o que estava fazendo quando disse: “Trabalharás todos os dias de tua vida, infeliz, e comerás o pão que o Diabo amassou...”. O Inferno, bem que podia atender pelo amaldiçoado nome de fome.
O faminto, o de verdade, é aquele que não mais tem forças para pedir um pedaço de pão, pelo amor de Deus; é aquele que evitamos olhar nos olhos, porque o olhar, saindo de dentro das profundezas sem fim de órbitas semi-mortas dos desesperados, como que nos acusa, e diz que somos todos culpados.
Para o faminto, Deus é o único interlocutor, pois perde a faculdade de se comunicar com aqueles seres misteriosos, que são os homens que não conheceram o horror da fome. Estômagos plenos de satisfação, como estão os cérebros dos que nos dirigem, seria o caso de perguntarmos?
Reduzidos à indigência mental, esfaimados de conhecimento, é a resposta, pois não há nada que se possa acrescentar sobre aqueles que governam 8,5 milhões de quilômetros quadrados, dos quais a metade, sequer é ocupada, quanto mais cultivada.
Daí de comer a quem tem fome, disse o Todo-Poderoso, num prenúncio do que adviria. Como quase tudo o que falou, esta foi mais uma mensagem que não ouvimos. O trágico, é que continuamos fazendo questão de não ouvir.
Enquanto um só homem padecer o mal da fome, a humanidade poderá dizer que é tudo, menos humana.