sexta-feira, 19 de novembro de 2010

CINZEIROS NÃO FALAM

Lá estava o cinzeiro sobre a mesa. Não tinha nada de excepcional. Era um cinzeiro como milhões de outros, espalhados nos escritórios, nos bares e nos lares. Olhei mais detidamente, e não sei se foi o cheiro acre da espelunca em que me encontrava, ou se o encaracolado azulado e hipnotizante que subia da ponta de um cigarro acesso, já meio acabado, assim como podia simplesmente ser o efeito da meia dúzia de doses de conhaque que ingerira, sem sequer sentir-lhe o gosto. A única coisa que me interessava, era o queimar garganta abaixo, provocado pelo conhaque forte e de terceira, que meus poucos trocados permitiam tomar, e a tonturinha que a leve embriaguez provoca, livrando-me do mundo real e me transportando para um outro onde tudo é possível. Até mesmo olhar a morte e o fracasso de frente. Mas, o certo, é que por qual motivo fosse, juro que ouvi o cinzeiro falar. Sua voz, nítida, como convém a um cinzeiro de vidro, disse-me com ar interrogativo:
- Tens idéia de quantos fumantes antes de ti, já estiveram sentados aí onde estás, com os mesmos problemas, os mesmos cigarros, a mesma embriaguez, o mesmo ar fracassado, a mesma voz rouca de quem não escapará do câncer na garganta? Apalermado com o que ouvira, e com a voz rouca de quem não escapará do câncer na garganta, respondi:
- Claro que não. E dei o assunto por encerrado. Mas ele, o cinzeiro, parece que estava a fim de conversar. Até onde se sabe, cinzeiros não falam. Quem sabe não fosse eu o primeiro a ouvi-lo e dar-lhe trela, daí a insistência em falar?
- Pois é, insistiu ele. Muitos, antes de ti, aqui estiveram. Ouvi com paciência suas lamúrias e o relato de seus dramas pessoais. Lares desfeitos, empregos perdidos, filhos mal amados, auto piedade, prostitutas arrependidas, vidas malsucedidas, enfim. Não sei por que, bêbados e fumantes adoram contar suas vidas, seus fracassos. Só não falam de sucesso. Talvez porque, só os tolos gostem de falar do próprio sucesso. O problema, aduziu, é que eu não fumo. Pra dizer a verdade, odeio fumo e fumantes. Mais do fumo, condoeu-se, vendo uma certa expressão de tristeza em mim. Olho pra você e vejo o drama da vida real, disse, contorcendo-se levemente. O problema é sempre mulher, não é? E respondeu ele próprio:
- Claro que é mulher. E mulher casada. Mulheres casadas só servem para ser infelizes, e tornarem amantes apaixonados infelizes também. Não gosto disso, acaba em morte.
E eu lá, abestalhado com o que ouvia. O maldito cinzeiro parecia ler pensamentos. Sou marinheiro velho. Já vi de tudo na vida. Suportei todas as tempestades que a vida pode infligir a alguém, mas cinzeiros falarem? Afinal de contas, em que mundo vivemos? Terei enlouquecido?
- Não, meu amigo - disse o cinzeiro, colocando em evidência uma amizade que não existia. Cinzeiros, ao que eu saiba, só serviam como repositórios de pontas de cigarros fedorentos e nada mais. Amizade entre fumantes e cinzeiros, jamais. É quase como se fosse possível amizade real, sincera, entre o bêbado e copo.
- Esta mulher vai te perder. Ficarás sem dormir, sem comer, fumarás mais e beberás muito mais. Não pensarás em mais nada, obsedado por ela. Teu fim será a sarjeta da qual não estás tão distante assim, sentenciou.
Acho que foi naquele momento que resolvi acabar com tudo. Sem que ninguém percebesse - e pra dizer a verdade ninguém estava ali pra perceber coisa alguma - saquei o revólver, coloquei-o na boca e disparei. O barulho do tiro confundiu-se com o barulho da morte do cinzeiro que, indo ao chão, quebrou-se em mil pedaços. Subimos todos. O meu espírito, agora em paz, subiu em direção ao infinito, ladeado por uma encaracolada fumaça azul e fragmentos de um cinzeiro que descobriu tarde demais que cinzeiros não falam. Ou não deveriam falar.