quinta-feira, 8 de abril de 2010

O SENHOR DAS MOSCAS

Dois caboclos discutiam à margem do rio. Conversa de caboclo. Pausada, entrecortada por longos silêncios. Pausa para preparar um ci-garro e tomar uma talagada de cachaça, que ninguém é de ferro.
Um deles coça a cabeça, ar intrigado de quem não entendeu absolutamente nada. O outro concorda.
- É verdade, meu compadre, o homem é o cão.
- Pior, diz o outro. É o capeta, o coisa ruim.
E eu olhando. Olhando e escutando. Completamente idiotizado por estar desplugado daquela internet cabocla. O idioma era estranho. O cigarro e a cachaça, também. Fui cedo demais para a cidade e esqueci minhas origens. Fumo havanas e bebo Logan’s.
Ainda lembro a cara de espanto dos dois caboclos quando, com ar de empáfia disse-lhes o que fumava e o que bebia.
Liga não, “sormano”, disse um deles. Isso é marca de cachaça que não chega aqui. Tinham razão. Fui embora cedo demais. Eles, ficaram. Permaneceram virgens como os rios, onde canoas, por mais que sulquem a superfície, não lhes deixam marcas. As águas não envelhecem, não criam cabelos brancos. No seu eterno ir e vir, não têm contato com o tempo. Talvez por isso permaneçam eternamente virgens. Hímens se não lhes rompem. Seu equilíbrio é algo que nunca consegui entender, do alto do meu mais completo desequilíbrio.
Mas, voltemos ao assunto que não entendia. Tinha perdido os bondes. O da história, da minha história e o da conversa. Conversa deles. Quedei-me a ouvir.
- Pois é, o homem é o Satanás, é Belzebu, disse um.
- É Mefistófeles, é o rei do Mal, disse o outro. E complementou: É Lucifer. Nem Deus o aguentou por perto.
E eu ali, como um Goethe extemporâneo, ouvindo falar de Fausto em pleno seio da floresta.
- Os Cavaleiros do Apocalipse não podem com ele, disse o mais novo, com ar didático. Foi quando entendi o porquê da Bíblia que carregavam consigo.
- É pra proteger a gente, explicou. O homem é pior que a Fome, a Peste e a Guerra.
- Pior, complementou o mais velho. Perante ele, a Peste a Fome e a Guerra se curvam.
E eu ali. Completamente perdido. Será que estava sonhando? Tive dúvidas. Entrei em pânico. Comecei a pensar se não estaria ocorrendo comigo, o mesmo que ocorrera com o sábio chinês que sonhara tão intensamente ser uma borboleta, que passou o resto da vida sem saber se era uma borboleta que sonhara ser um homem, ou se era um homem que sonhara ser uma borboleta. Não sei que fim levara o sábio chinês, mas eu, já não sabia mais quem era.
A floresta tem esse quê de mágica. Absorve-nos tão completamente, que nos retiramos do mundo onde vivíamos, a ponto de não mais sabermos se vivíamos ou se sonhávamos viver.
Passei a ter mais convicção quando um dos caboclos disse: Ele é o Senhor das Moscas. Sei disso porque li William Golding.
- Tem razão, disse o outro. Eu li O Mestre e Margarita, de Mikhail Bulgakov, e sei do que está falando. Mais surrealista, impossível.
Só muito tempo depois que foram embora, é que compreendi de quem falavam. Falavam de mim. Na terra dos homens sou tratado de excelência. Não me conhecem bem. Se conhececem, jamais votariam em mim.