segunda-feira, 4 de outubro de 2010

CÍRIO CABANO

Este texto não é meu. É de autoria de André Costa Nunes (andré@terradomeio.com.br) , blog (www.terradomeio.com.br), escritor paraoera da melhor qualidade. Foi meu amigo e irmão de alma Rui Guilherme Vasconcellos de Souza Filho que mo enviou e sou-lhe grato por isso. É um texto tão bonito que, ainda que sem a permissão do autor, decidi colocá-lo neste blog para que outros, paraenses ou não, possam apreciar sua beleza.


“Paraense, ateu. Filosoficamente, materialista. Devoto de Nossa Senhora de Nazaré. Este último atributo, no mês de outubro, transcende os demais. É inerente ao ser paraense.
Durante algum tempo, no auge do obscurantismo ideológico da juventude, ainda tentei renegar, mas romântico inveterado, há muito deixei de remar contra a maré. Mergulhei de cabeça no paraensismo, o que não existe sem açaí, tacacá, Ver-o-Peso, marés, rios e ilhas. Canoas e torso nu. Sem camisa. Sem a devoção à Virgem de Nazaré.
E isso tudo, à imagem do próprio Rio Amazonas, como em um caudal, deságua em Belém, no segundo domingo de outubro. A colossal procissão do Círio, com milhares – fala-se até em milhões – de romeiros, diz que, começa na catedral da Sé e termina cinco ou seis quilômetros depois na Basílica de Nazaré, mas um olhar atento vai além. Vê que a romaria começa em cada furo, rio, igarapé, ilha ou beiradão.
Canoas, ubás, caxiris, barcos, a motor, vela ou remo. Começa nas palafitas e barrancos. Nos quintais das cidades, no porco cevado, no patarrão, no ralar da mandioca, no tipiti, e no moer da folha de maniva. Matéria prima para o almoço do Círio. Maniçoba e pato no tucupi. Farto e generoso. Para a família, para os amigos, e para quem mais chegar.
Começa no vestido de chita com babados, decote comportado e comprimento a baixo dos joelhos. Calça e camisa de manga comprida, novas, as únicas mudas de roupa compradas no ano, mas estreadas no Dia da Festa. Sapatos, sandálias, baixas ou de salto, tênis? Nenhum.
Acompanhar o Círio de Nazaré se vai descalço. Naturalmente.
Começa com banho-de-cheiro. Vinde-cá, priprioca, patichouli, orisa, pau-cheiroso, chama, pau-rosa, catinga-de-mulata.
E se vem de todos os cantos do Estado Pará que em outubro se transmuda para além das fronteiras geopolíticas. Invade o Maranhão, o Amazonas, o Amapá. É como se fosse o Estado de Nossa Senhora de Nazaré. Esse é o núcleo central tangido pelas águas, senhora de todos os destinos.
Essa é a procissão cabana de antes da estrada, do asfalto, do ônibus, do avião, do arranha-céu, do apartamento, do estacionamento proibido.
Essa nova tribo do fast food também é bem-vinda. Por adesão, é claro, afinal, no manto da Virgem e no coração cabano há sempre espaço de sobra. Apenas há que aderir ao espírito secular do Círio. Ficar “mundiado” pelo bom e pelo bem. Sentir-se igual. Caminhar descalço.
É por tudo isso, pelo peso dessa enorme bagagem da cultura paraense, que, todos os anos, quando passa a berlinda da santa, este velho comunista se emociona e chora.