quarta-feira, 26 de maio de 2010

A LESTE DO ÉDEN



O primeiro registro oficial que se tem da existência da água está no Gênesis, capítulo I. Diz assim: “No principio, Deus criou os Céus, e a Terra era informe e vazia. As trevas cobriam o abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas”. Depreende-se daí, que desde o início da criação, na visão judaica, a água e o Divino têm tudo a ver. É como se dissessem: respeitemos a água, porque foi a partir da viagem do Espírito do Todo-Poderoso sobre a sua superfície, que tudo começou.
Deus, ainda segundo o Gênesis, disse também: “Haja um firmamento entre as águas para mantê-las separadas uma das outras. Deus fez o firmamento e separou as águas que estavam sobre o firmamento. Deus chamou Céu ao firmamento. Assim surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o segundo dia, Assim está escrito.
Note-se importância da água. Antes da própria luz, ela já existia. A Bíblia não se esquece de dar explicações acientíficas dos tempos em que foi escrita. O caos primordial é imaginado como uma mistura da Terra com as águas eternas. Deus é o grande ordenador, que separou as águas das águas e a terra das águas. O homem só aparece no fim, após a criação dos animais, cada um segundo a sua espécie.
Foi então que houve o grande erro. “Façamos o homem à Nossa imagem e semelhança, para que domine sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam pela terra”, disse o Todo-Poderoso. Não há registro que tenha dito, dominai uns sobre os outros, e que o homem que Eu criei seja o lobo de si mesmo. Governo e tutela são invenções tipicamente humanas, que só aparecem depois da degeneração do homem.
Deus também disse, após ter criado o homem: “Não é conveniente que o homem esteja só: vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele. E então, após ter formado da terra, todos os animais dos campos e todas as aves do céus, adormeceu profundamente o Homem, e dele fez a Mulher. Foi quando Haendell tocou pela primeira vez, em escala universal, o seu Halleluyah. Foi também quando te vi, pela primeira vez, minha amada imortal.
A leste do Éden fica a África negra. Foi para lá que te conduzi, após perder o Paraíso, porque o meu paraíso era tu. Foi de lá que, muito tempo depois que o Dilúvio tinha lavado todos os meus pecados, e Deus restabeleceu sua aliança para conosco, foi que te dei a primeira aliança, que carregas até hoje. Tuas argolas de metal amarelo, dizem que a aliança ainda existe, e que a usarás para todo o sempre, até mesmo quando o Universo não mais existir.
Ao concluir toda a sua obra, o Senhor Deus descansou no sétimo dia. Eu, porém, não descansarei jamais. Quando recebi a ordem de descansar também, no sétimo dia, vi que isso era impossível. Como descansar, pensei, se há tanto por fazer, há tanto por amar? Foi por isso que, tal qual o navegante negro, vim para as costas do Brasil. Atravessei os sete mares e os sete rios, até chegar ao Paraíso das tuas delícias, à margem do mais belo dos rios. Mas, o lobo de mim não permite que eu descanse. Por inveja, polui meu rio, destrói minhas florestas e envenena meus ares.
Mas hei de sobreviver. Enquanto estiveres comigo não serei vencido. Ainda tenho esperanças de que Ele refaça o meu Éden primevo. Quem sabe, se ao invés de Gheon, Tibre e Eufrates, prefira O que me criou, o Amazonas? Quem sabe? Tenho esperanças de que assim aconteça, quando luz e água se confundirão contigo. E então, iluminado e limpo de todos os meus pecados, dedicarei minha vida à função sagrada de te adorar, porque foi para isso que Ele me criou. E se não foi, deveria ter sido.

O CANTO DO CISNE

Deslizou pelas águas plácidas e um véu de tristeza encobriu seus olhos. Sabia que nunca mais veria aquela paisagem de sonho, aquele verde que cobria as margens do lago em que vivera durante tanto tempo. Pensou nas pétalas das flores que se debruçavam sobre o lago, e que caíam, quando chegava o tempo das flores caírem. Se as árvores ficavam menos belas, o lago, em compensação, enchia-se de mil variadas cores que só as flores primaveris têm.
Pensou em quantas primaveras passara ali, e esboçou um sorriso. Pensou nos verões da sua adolescência, quando os hormônios da juventude o levaram a cometer loucuras mil, e pensou que fora um tempo perdido. Tempo bom, era o da quase senectude que finalmente atingira. E pensou que, no inverno da sua existência, apesar de todas as fêmeas que lhe povoaram o caminho da vida, é que tinha encontrado a sua metade, aquela que fazia com que finalmente, após tanto tempo, se sentisse um ser por inteiro, aquela que lhe fora prometida pelos deuses das águas, quando sequer suspeitava, que estava destinado a nascer para reinar, soberano sobre todos os da sua espécie.
E perdido nos pensamentos, que tal qual um filme antigo, rodavam devagar nos olhos da sua imaginação, não a viu deslizar, vinda da outra margem do lago, na sua direção. O filme interrompeu-se para que ele pudesse apreciar na sua plenitude, aquela fêmea de beleza ímpar, que fizera com que o seu coração batesse mais forte, e voltasse a sonhar e a sentir sensações que julgara sepultadas para sempre, no lodo da vida que deixara para trás. Sorriu mais uma vez, mas era um sorriso diferente. Nem Salomão, em toda a sua glória, tivera tesouro mais precioso. Negra e bela, o sol coruscava, quando refletido na plumagem de ébano que lhe recobria o corpo, como se fosse uma rainha de Sabbah mil vezes mais rica e bela.
Foi nesse momento que sentiu no peito, a dor dos que amam demasiado, e sabem que a vida se lhes escapa nas dobras do tempo. E então chorou. Chorou e cantou. As lágrimas, apenas duas pérolas translúcidas, que tombaram dos seus olhos tristes para o lago belo e insensível. O canto, seu último canto, seu canto de morte, ecoou por todo o lago, subiu as serranias próximas e perdeu-se na imensidão dos céus.
Era o sinal para que os deuses abrissem as portas do paraíso, destinado aos cisnes que amaram como só os cisnes podem amar entre todos os seres vivos. Quando finalmente o belo exemplar negro de cisne fêmea chegou até ele, encontrou apenas um corpo branco, como nenhum outro cisne branco conseguira ser, desde que o Grande Cisne criara o Universo, sobre o lago que ondulava tristemente, como que movido por uma compaixão inexplicável.
E como era negra, bela e fêmea, pensou distraída e conformada que era destino dos cisnes velhos morrerem, quando era chegado o tempo dos cisnes velhos morrerem. Não sabia que tinha sido ela, em realidade, a coisa mais importante que ocorrera na vida daquele ser majestoso, que fora um dia o rei do lago. Não sabia que os cisnes só cantam uma vez na vida. Exatamente quando sabem que é chegado o momento de partir para nunca mais voltar. Não sabia que tinha sido ela, seu último sonho, sua última quimera, o seu último e verdadeiro amor.
E por não saber, afastou-se dali, deslizando negra, altiva e bela, na direção de um jovem cisne que a esperava do outro lado do lago.

PARA QUE TUDO ACONTECESSE

Para que tudo acontecesse, foi preciso que eu te encontrasse, foi preciso que tu existisses. Para que existisses, foi preciso que teus ancestrais tivessem vindo de há muito do coração da Mãe África para outras terras, outros povos, outros costumes, outras línguas, e misturassem seu sangue ao sangue desses povos estranhos, de pele diferente dos da tua raça.
Mas, muito antes, foi preciso que os primeiros hominídeos descessem das árvores e produzissem um novo animal. Esse animal, muito tempo depois, receberia o nome de homem. Fico imaginando, a solidão do primeiro ser que teve a consciência do próprio existir, e sentiu-se tão pequeno, tão diminuto, tão ínfimo, diante da imensidão do Universo. Aterrorizado, quem sabe, imaginou um ser Todo Poderoso que lhe ouvisse as angústias.
Eu, tal qual aquele primeiro homem, sofro da solidão mais absoluta dos que sabem que não existem palavras que possam exprimir quanto dói estar sozinho, quando não se tem deuses para adorar.
Mas, para que tudo acontecesse, foi preciso que, antes dos primeiros homens e dos primeiros deuses, que o espírito de Deus deslizasse por sobre a superfície das águas. Mas, antes que as primeiras águas existissem, foi preciso que toda a matéria existente antes de tudo, se unisse num só bloco e explodisse, há 15 bilhões de anos luz.
Dessa explosão cósmica, mais poderosa do que tudo o que poderia ocorrer depois, pois nada ocorreu antes, foi que nasceu o meu amor por ti. Naquele tempo,, quando nada existia, exceto a massa informe de tudo o que há, eu já dançava contigo nas estrelas que ainda estavam por ser criadas, o Bolero de Ravel. E ainda que não creias, depois de todo esse tempo, continuas linda, como se o tempo não existisse. Foi assim que tudo aconteceu, ainda que ninguém creia, o que é irrelevante.
Certas coisas não ocorrem para que se creia. Ocorrem apenas, porque assim está escrito nas estrelas.