sábado, 24 de julho de 2010

O LIVRO


Abri o livro e comecei a lê-lo. Antes não o tivesse feito. Nele, vi toda minha vida. Vi coisas que gostei e outras que detestei. Vi as mulheres que rolaram comigo na cama, numa fúria incessante. Vi belas mulheres das quais guardo boas lembranças e outras que antes não tivesse visto. Só amei verdadeiramente duas. Uma na juventude dos meus 17 anos e outra no outono da vida. Desta, guardo lembranças que levarei para o túmulo. Da outra, a lembrança que tenho é a de um rapaz que nada sabia e nada podia, mas pensava tudo saber e tudo poder. Era o dono do mundo. Mas de outras, o que vi no livro da vida foi a sensação de um velho fauno à procura incessante de sua Lolita.
Mas vi, também, a história de um sobrevivente. Aos quatro anos, morando à beira de um rio dos muitos que existem na imensa Amazônia, guardo a lembrança de um menino tuberculoso ao tempo em que o bacilo de Koch era muito, muito letal. Posteriormente, vi o menino tifóide e, anos depois, o sobrevivente da grande gripe asiática que levou para o túmulo centenas de milhares de pobres diabos ao redor do mundo. Problemas aéreos de toda sorte não tiraram minha paixão pela aviação e o naufrágio de uma das dezenas de milhares de embarcações que cortam as águas do grande rio não me tiraram o amor pela vastidão aquática e selvática da minha terra natal. Mas vi, também, nesse estranho livro, o malárico que pedia a morte para cessar a dor, vi o homem turbulento que levou tiros, facadas, porretadas e chifradas. Afinal de contas ainda existem maridos inconformados com o próprio chifre, por incompetência sexual.
No livro da minha vida, vi o marido irresponsável e o alcoólatra, que só encontrava prazer nos bares, onde tudo era alegria, apesar dos pesares. Percorri o país e parte do mundo e vi paisagens fascinantes. Outras, nem tanto. Enfim, vi tanto, sofri tanto e chorei tanto, mas não senti no entanto, o tanto de prazer que tive ao conhecer aquela, cuja lembrança levarei comigo para a eternidade. Na verdade, como diz o poeta, quem passou pela vida em brancas nuvens e em plácido repouso adormeceu, quem não sentiu o frio da desgraça, quem passou pela vida e não sofreu, não viveu, foi apenas espectro de homem, passou pela vida, mas não viveu. E triste daquele que envelhece sem ter histórias para contar. É sinal que apenas passou pela vida, mas não viveu.
Um dia, como diria o compositor popular, quando eu me chamar saudade, não quero choro nem velas, quero uma rosa amarela gravada com o nome dela.
Ainda não viajei a viagem que um dia todos faremos. Quero estar pronto para este momento inevitável. Quando ele chegar, espero que Deus perdoe meus pecados o que acho pouco provável. São tantos que mesmo Ele, na sua bondade infinita não terá ânimo para me perdoar. Quando a hora chegar, quero que uma alma caridosa feche a última página desse livro e o guarde em sua estante. Mas não o leia. Cada um tem seu próprio livro. Alguns, merecem o Prêmio Nobel de Literatura. A maioria, porém, não merece que se passe da primeira página. São livros que contam histórias pífias, cujas páginas - a maioria - estão em branco. Evite-os. Não valem a pena serem abertos.
O fim do livro da minha vida será um plágio de Gabriel Garcia Márquez. “Agora que estou chegando à idade senecta, decidi que era tempo, depois de tanto tempo de abstinência se-xual, telefonar a uma cafetina amiga minha - que me prestou tantos favores nas últimas décadas, ajuda para comemorar meus 90 anos. Queria uma ninfeta para honrar o dia de meu aniversário, eu que há tanto vivia sozinho. Fazia anos que estava na santa paz com meu corpo, dedicado à releitura diária de meus clássicos e meus programas privados de música clássica, mas o desejo daquele dia foi tão urgente que me pareceu um recado de Deus. Pendurei, então, minha rede num canto da biblioteca e me estendi com o peito oprimido pela ansiedade da espera. Foi em vão. Foi nesse dia que parti para o outro lado da vida e, finalmente, encontrei a paz pela qual ansiara tanto.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário